O Quinhentismo brasileiro nos apresenta dois tipos de literatura: literatura de informação e literatura de catequese. O primeiro documento quinhentista redigido no Brasil é a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha, narrando a chegada oficial de portugueses ao território brasileiro e seu contato com os Tupiniquins.
Como toda literatura de informação, a exemplo do Diário de Pero Lopes de Sousa, os viajantes inclusive informam as coordenadas, paradas, condições do tempo e do mar quando estavam navegando. No caso de Pero Vaz de Caminha, ele mesmo faz questão de ocultar isso para ser mais objetivo na descrição do que se sucedeu de mais importante, que foi a descrição da terra firme. Embora, não tenha deixado de descrever percalços da viagem. A literatura de informação do quinhentismo é altamente descritiva.
“A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto. Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais! E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.”
Mas o que queremos mesmo tratar é sobre a confusão que se diz sobre o primeiro contato entre portugueses e Tupiniquins. Ao estabelecer contato com os Tupiniquins do hoje litoral baiano, Nicolau Coelho foi o primeiro português, que se tenha notícia, a firmar um contrato em solo brasileiro. Vejamos:
“Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.”
Embora se diga que os portugueses trocaram presentes com os povos étnicos em um primeiro momento, não foi um contrato de troca, mas de doação. O português doador entregou um barrete vermelho, uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Em seguida, o português Nicolau Coelho se torna donatário em outro contrato de doação realizado em seguida. Vejamos novamente:
“Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza “
Não houve contrato de troca, mas dois contratos de doação seguidos. No caso, a doação por ser um contrato unilateral, não se exige a sinalagma que é a condição de proporcionalidade entre as prestações em um contrato bilateral. Não estamos aqui, portanto, embora os presentes pudessem se equivaler em importância, a falar de um contrato bilateral. A intenção, pela narrativa foi a de presentear, a troca não foi uma condição imposta para o contato.
O contrato de doação por ser consensual e de coisa móvel de valor não amparado pelas Ordenações Afonsinas que vigoravam em 1500, foi consumado pela simples tradição real daqueles objetos.
Segundo as Ordenações Afonsinas (Dom Afonso V), as doações que exigiam forma solene eram aquelas que ultrapassassem “quinhentas dobras”. Vejam o texto escrito em português arcaico:
Título LXVIII
Das Doaçoões, que ham de jeer injinuadas, e confirmadas per E!Rey.
“SEGUNDO o Direito comum e geeralmente ufado, toda doaçom, que paffa conthia de quinhentas dobras, ou coroas d'ouro , deve feer infinuada, que quer tanto dizer, como coufa aprovada pela Juftiça da terra , e d'outra guifa nem val ·per direito alguã coufa, falvo quanto abranger ataa dita co nthia; e em todo mais, que fobejar da dita qu~ntia he nenhu,ã, e de nenhuú vigor, affi como fe nunca foffe feita.”
A exemplo do nosso atual direito civil, que exige escritura pública para imóveis acima de 30 salários mínimos, para fins de doação, compra e venda e permuta, no Direito das Ordenações Afonsinas, aquele era o requisito para tornar válida uma doação. No caso da Carta de Pero Vaz de Caminha, pela informalidade, pelos valores estimados dos objetos, temos ainda sim uma doação, mas que as pessoas costumam confundir com troca (permuta).
Laura Berquó
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