domingo, 29 de junho de 2025

PL N° 778/2025: PROSTITUIÇÃO E HIGIENISMO SOCIAL EM PLENO SÉCULO XXI

 


No dia 02 de junho se comemora o Dia Internacional da Prostituta. Aproveito o ensejo da data para comentar o Projeto de Lei n ° 778/2025 do Deputado Federal Kim Kataguri (UNIÃO BRASIL/SP), que pretende tornar o 'trottoir' contravenção penal. Assim dispõe o referido projeto:

"Altera o Decreto-Lei n° 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), para prever a contravenção penal de prostituição em via pública.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º O Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 47. ......................................................

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou

multa, de 50 a 100 dias-multa.

Prostituição em via pública

Parágrafo único. Incide na mesma pena do caput deste artigo o agente que se prostituir em via pública.” (NR)

Art. 3° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."

Embora se trate de um tipo mais leve de infração penal, a contravenção penal não deixa de caracterizar um ilícito penal. Muito interessante essa preocupação com as vias e moralidade públicas. Estamos retomando o higienismo social, com uma proposta moralizante e puritana como se estivéssemos em pleno início do século XX. O cronista João do Rio, em sua obra "A Alma Encantadora das Ruas", publicada em 1908, traz um capítulo em que o autor pontua "onde acaba a rua", conduzindo obviamente para o sistema carcerário carioca daquele tempo. O perfil prisional feminino desde então não apresentou mudanças, onde a maioria das mulheres presas era e continua composta por mulheres negras (pretas e pardas), com raras exceções na época (1908) de brancas, havendo também uma homogeneidade nas práticas ilícitas apontadas contra as mulheres. Se hoje temos um perfil de mais de 63 % da população carcerária feminina processada pela Lei de Drogas, naquele Rio do início do século XX a mendicância, a prostituição e todas as exposições causadas pela exclusão social da mulher negra e pobre as conduziam ao cárcere, dentro da mesma mentalidade de higienismo social que denunciamos aqui. Um clássico do anarcofeminismo brasileiro de 1924, intitulado ‘Virgindade Anti-higiênica. Preconceitos e Convenções Hipócritas de Ercília Nogueira Cobra, considerada pornográfica pela moralidade "higienista" é uma crítica ainda atual à condição econômica da mulher e sua exclusão social e sexual, pela falta de acesso à capacitação profissional que levava e leva à prostituição. No caso das mulheres trans e travestis não há diferenças. Na obra ‘Transfeminismo’ da Profa. Dra Letícia Carolina Nascimento (UFPI) é trazido o seguinte dado: "estima-se que 72% da população trans* não possua ensino médio". Letícia Nascimento ainda observa que travestis e transexuais são expulsas de casa em torno dos 13 anos de idade. E sobre a prostituição de mulheres trans e travestis diz: "A grande questão é que, para muitas, essa é a única opção de trabalho, já que os empregos formais excluem travestis e transexuais não apenas por conta da transfobia estrutural, mas também pelo fato de elas não terem componentes mínimos exigidos em muitos empregos, tais como ensino médio completo". Como tenho uma visão amoral da prostituição, não podemos esquecer que a prática da prostituição em si nem sempre traz como determinante a exclusão social de mulheres cis e trans, mas também a liberdade da mulher em fazer o uso que bem entender do seu capital erótico, termo cunhado pela socióloga inglesa Catherine Hakim, questionando sobretudo em sua obra Capital Erótico o comportamento puritano de feministas anglo-saxônicas que são contra a prostituição e do ‘capital erótico’ feminino em geral. Ainda segundo a justificativa do Projeto de Lei n° 778/2025 do Deputado Federal Kim Kataguri, o que se tentará proibir é que profissionais do sexo façam ‘ponto’ em frente às casas de famílias, porque o fato das profissionais fazerem seu 'trottoir' nesses locais, segundo Kataguri, estaria impedindo o direito de ir e vir das referidas famílias. Pelo que concluímos, o problema para muitos seria topar com a figura da prostituta, impedindo o direito de locomoção da tradicional família brasileira... Ocorre que a prostituição em si, as chamadas profissionais do sexo possuem o CBO 5198-05. Elas também possuem o direito fundamental de ir e vir, o direito fundamental à liberdade de locomoção e de exercerem o seu ofício, de trafegarem e ocuparem as vias. Outro ponto do referido PL n° 778/2025 é que as profissionais do sexo seriam vetores (termo que uso a partir da ideia higienista e sanitarista bem ao espirito do projeto de lei em questão) para crimes de terceiros. Até onde se sabe, a pena é individualizada no Brasil. O princípio constitucional da intranscedência da pena não autoriza que terceiros paguem por crimes que não cometeram. Não há como a profissional do sexo ser responsabilizada pelo crime de proxenetas e cafetinas. Caso a profissional do sexo cometa algum crime, ela será responsabilizada por essa conduta em específico. Desnecessário esse projeto com viés puritano e higienista de tornar o 'trottoir' contravenção penal em pleno século XXI.

Laura Berquó

Advogada e Professora Adjunta (UFPB). Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Ex-Conselheira Estadual de Direitos Humanos (Paraíba). Membro efetivo dos Institutos dos Advogados Brasileiros – IAB

Fontes:

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 778, de 07 de março de 2025.

COBRA, Ercília Nogueira. Virgindade anti-higiênica: Preconceitos e convenções hipócritas. E-book (Kindle)

HAKIM, Catherine. Capital erótico. Pessoas atraentes são mais bem sucedidas. A ciência garante. Tradução Joana Faro. Rio de Janeiro: Best Business, 2012.

NASCIMENTO, Letícia Carolina. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Martin Claret, 2007


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