terça-feira, 1 de julho de 2025

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS IV CARTA 5.1


 "Para o senhor governador Ricardo Coutinho


Oi senhor governador, aqui que lhe escreve é uma apenada do Presídio Julia Maranhão edigno aqui não só a minha revolta como as das demais apenadas também, com o acontecido com a nossa companheira Adriana Paiva que supostamente se enforcou.

Quero lhe dizer que acompanhamos toda a tragetória de Adriana aqui na cadeia e ela era uma pessoa completamente normal, só que ela não aceitava a forma que as (os) agentes tratava as apenadas, com humilhações, desacatando as apenadas o todo tempo com palavras de baixo galão, agredindo fisicamente, a diretora Cintia Almeida por várias vezes chegou no pavilhão embriagada acordando, e chingando as apenada, isso demadrugada, as nossas visitas sendo destratado. E Adriana Paiva questionava quando via esse tipo de coisa acontecendo, foi ai a onde ela deu seu primeiro passo, para o seu triste fim,   dai então começou a perseguição das (os) agentes em cima dela, fazia 1 ano e 2 meses que Adriana estava presa e desse tempo, praticamente, 1 ano ela tirou de sofrimento sendo agredida fisicamente pelos (as) agentes , tiralo ela do pavilhão, arrastada e sendo agredida pelos agentes, foi levada para o castigo lá ela ainda foi" (continua)

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO (ACÓRDÃO) - PROCESSO SOBRE TORTURA NO INFERNO BOM PASTOR

 

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR RELATOR DA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA PARAÍBA

 

 

 

PROCESSO CRIMINAL N.º 0811139-95.2021.8.15.2002

 

 

 

LAURA TADDEI ALVES PEREIRA PINTO BERQUÓ, brasileira, solteira, advogada, RG n.º 2304048 SSP-PB, CPF n.º 036.669.104-08, com endereço na Rua Joaquim Borba Filho, n.º 235 – aptº 203 – Jardim São Paulo –– João Pessoa – Paraíba, vem perante Vossa Excelência, representada por seus advogados,  apresentar EMBARGOS DE DECLARAÇÃO nos autos do processo em epígrafe movido pela Embargada CINTHYA ALMEIDA DE MEDEIROS, já devidamente qualificada, pelas razões de fato e de direito anexas.

 

DAS RAZÕES DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

 

DA DECISÃO VERGASTADA

 

            A Câmara Criminal decidiu por manter a decisão do juízo  a quo , que julgou procedente o pedido da Embargada em condenar a Embargante  pela prática de crime de calúnia, difamação e injúria previstos no arts. 138, 139 e 141, incisos II e II, e art. 71 do Código Penal Brasileiro.

Restando comprovados autoria, materialidade e o dolo específico das condutas tipificadas nos arts. 138 e 139, c/c art. 141, incisos II e III, e art. 71, todos do Código Penal, impõe-se a manutenção da sentença condenatória;

 

As manifestações da apelante, veiculadas em redes sociais, extrapolaram o animus narrandi e o animus criticandi, configurando calúnia e difamação, uma vez que imputaram falsamente à vítima a prática de crimes já apurados e descartados por sindicância regular, afetando sua honra e reputação de forma pública e reiterada;

 

Apenas abertura de parênteses para rebater também a decisão, a sindicância da PGE-SEAP a que faz alusão o Acórdão é tão regular como foram os inquéritos de apuração de torturas da Ditadura Militar por torturadores e de outros sistemas autoritários que hoje são desmentidos. Não deveria ser considerado se foram juntadas provas inclusive que desmentem a versão oficial. Mas não iremos abordar essa questão agora, porque o ponto dos Embargos de Declaração é o cerceamento de defesa que permanece.

 

                   Passamos a tratar da contradição verificada no próprio Acórdão em que afirma que não houve cerceamento de defesa, isto é, que não foi violado o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa da Embargante, porque não teria ocorrido prejuízos à Embargada, embora condenada. Realmente, trata-se de uma contradição absurda, uma vez que as testemunhas não foram dispensadas pela defesa e a dispensa pelo Magistrado ocorreu antes mesmo da produção de outras provas testemunhais e da própria audiência de instrução. Vejamos a parte contraditória:

 

“Não se configura cerceamento de defesa quando o juízo de origem, com base no art. 400, §1º, do CPP, indefere a oitiva de testemunhas que expressamente declararam não possuir conhecimento sobre os fatos, sendo, portanto, irrelevantes para a elucidação da controvérsia. Aplicação do princípio do “pas de nullité sans grief”, não havendo nulidade sem demonstração de efetivo prejuízo;”

 

 II - FUNDAMENTAÇÃO/MOTIVAÇÃO (ART. 93, IX, CF/88)

 

Sendo própria, tempestiva e observados os demais pressupostos – subjetivos e objetivos – e requisitos legais, conheço da irresignação.

 

Examino a preliminar elencada nas razões, de nulidade da sentença por apontado cerceamento de defesa, e a digo, de logo, impertinente.

 

É que o juiz condutor da demanda indeferiu a oitiva de determinadas testemunhas arroladas pela defesa, amparado no art. 400, §1º, do CPP, por considerar irrelevantes os depoimentos, uma vez que as próprias testemunhas declararam não possuir conhecimento dos fatos objeto da lide.

Assim, a decisão encontra respaldo legal, não representando qualquer violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Ademais, é firme a jurisprudência no sentido de que não há nulidade sem a demonstração do efetivo prejuízo, consoante o princípio do “pas de nullité sans grief”, o que não restou evidenciado, tampouco demonstrado, in casu, pela insurgente.

Ilustrativamente:

“Não se acolhe alegação de nulidade por cerceamento de defesa, em função do indeferimento de diligência e oitiva de testemunha, pois o magistrado, que é o destinatário final da prova, pode, de maneira fundamentada, indeferir a realização daquelas que considerar protelatórias, desnecessárias ou impertinentes, cabendo a parte requerente demonstrar a real imprescindibilidade na produção da prova requerida, o que não se verifica na espécie. APELO CONHECIDO E DESPROVIDO.” (TJGO. Ap. Crim. nº. 0094027-62.2019.8.09.0137. Rel. Des. Roberto Horácio de Rezende. 3ª Câm. Crim. Data de Publicação: 16.03.2023).

Fica a preliminar, pois, refutada.

 

1. Primeiramente, o juízo ad quem justifica a dispensa das testemunhas arroladas pela Embargante, como se as mesmas fossem irrelevantes para a Defesa. O problema é considerar irrelevantes testemunhas antes do início da fase de instrução com a oitiva das testemunhas. Nesse caso, antes do início das oitivas cabe à parte arrolante dispensar ou não. Como o juízo a quo e  ad quem podem inferir que são testemunhas irrelevantes ou não? Por que poderiam ser responsabilizadas por alguma omissão, já que foram comunicadas das torturas?

O juízo a quo, embora não admita, assim como a própria Câmara Criminal, não se sentiria bem em ter que ouvir autoridades, dentre elas Magistrados, Promotor de Justiça e atual Deputado Estadual que deveriam ter procedido à época com a apuração dos crimes de tortura (lesão corporal, abortos e assassinato na Penitenciária Feminina da Capital). Preferiu condenar a Embargante não é verdade? Portanto, embora esteja “fundamentada” pela Câmara Criminal a dispensa das TESTEMUNHAS DA EMBARGANTE no referido Acórdão, o que houve foi cerceamento do direito de defesa sim e isso é caso de NULIDADE PROCESSUAL;

 

Na Defesa/Exceção da Verdade, a Embargante arrolou as seguintes testemunhas que simplesmente informaram que nada sabiam dos fatos narrados pela Recorrente, pedindo assim dispensa do ônus de informar ao juízo quais os fatos de seu conhecimento sobre o suplício das presas, sobretudo de Adriana de Paiva Rodrigues, que foi amplamente informado na época ao Juízo da Vara de Execuções Penais, à Promotoria de Justiça de Execução Penal e ao então Secretário da SEAP, hoje o Deputado Estadual Wallber Virgulino. O pedido de dispensa de pronto foi deferido pelo juízo a quo, sem ao menos considerar que somente a instrução processual poderia realmente elucidar os fatos narrados na Defesa/Exceção da Verdade e que tem pertinência direta com a atividade profissional das seguintes testemunhas à época do fato:

 

1. Magistrado Carlos das Neves Franca (que inclusive ficou na posse da carta redigida pela presa Risoneide Borges, que testemunhou o “suicídio” de Adriana de Paiva Rodrigues. A carta foi entregue pela testemunha de Defesa da Apelante, Guianny Coutinho);

2. Magistrado Marcos Jatobá Filho (que substituiu Dr. Carlos Neves Franca

na época dos fatos na Vara de Execução Penal);

3. Promotor de Justiça Nilo Siqueira (que inclusive processou a Embargante por cobrar atitudes sobre as torturas que ocorriam no Bom Pastor e ainda ocorrem, porque não é porque a Embargante foi condenada em primeira instância que as torturas deixaram de acontecer por ordem da Embargada. A Embargante não se calará devido à condenação);

4. Ex- Secretário Walber Virgulino, hoje Deputado Estadual famoso na mídia nacional por seus blefes e pautas reacionárias, mas que na época dos fatos na condição de Secretário da SEAP inclusive ajudou a perseguira Embargante com a Sindicância fajuta da SEAP/PGE para que esta se calasse sobre as torturas do Bom Pastor, hoje Penitenciária Feminina Maria Julia Maranhão.

 Igualmente, a Embargante teve seu direito consagrado pelo Princípio da Ampla Defesa e Contraditório e o Princípio da Igualdade de Armas desrespeitado quando requereu ao juízo a quo que fossem expedidos ofícios para localizar a testemunha Luz Solar Félix por uma razão simples: antes de ser uma mera queixa-crime, tratava-se de Exceção da Verdade

onde estava se apontando à Embargada, o crime hediondo de tortura.

Assim, foi requerido que se reconsiderasse o indeferimento da oitiva da testemunha Luz Solar Felix que teve seu endereço informado com base em processos em andamento no próprio PJE. Porém, devido ao insucesso do Oficial de Justiça em intimá-la, embora o endereço estivesse correto, requereu ao juízo a quo que fosse oficiado o banco de dados do Tribunal Regional Eleitoral para localização de seu endereço para fins de confirmação, haja vista as eleições de 2022, bem como fosse oficiada a ENERGISA, CAGEPA, e o Ministério da Saúde – SUS para verificação do endereço por meio do cadastro de vacina de COVID, para fins de assegurar o direito constitucional de contraditório e ampla de defesa da Embargante.

Como pode ser verificado, a Embargante foi prejudicada na sua produção de

provas sendo extremamente CONTRADITÓRIO que o indeferimento da oitiva das testemunhas arroladas, a dispensa a critério do juízo, não tenham causado prejuízos à Embargante, que aqui responde como Querelada, mas na verdade é uma das Testemunhas das torturas.

No que tange ao direito, o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa, bem como de Igualdade de Armas se encontra previsto no artigo 5o, LV da CF/88:

“Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o

devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos

acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

 

O impedimento em produzir as provas testemunhais arroladas inclusive acaba ferindo também o Princípio do Devido Processo Legal, senão vejamos:

 

“A prova penal é inerente ao devido processo legal, pois não se admite que alguém sofra restrições em seus direitos constitucionais sem que o Estado se certifique de que sua decisão se encontra ressonância no seio da comunidade, pois em perfeita harmonia com os interesses sociais consagrados na Carta Política do País.(...)”(Paulo Rangel, p.. 438)

 

Logo, é manifesta a CONTRADIÇÃO em dizer que não houve lesão ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório em virtude da natureza das provas que deveriam ter sido permitidas a produção e não foram. O caso em questão é inclusive de NULIDADE PROCESSUAL, sendo o correto o retorno ao juízo a quo para oitiva das testemunhas que não deveriam ter sido dispensadas. Quer dizer que eu sei de um crime e apenas informo ao juízo ao ser arrolada que não sei de nada e sou dispensada antes da instrução ou sem ser solicitada a dispensa pela parte que arrolou?

 

PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Registro: 2021.0000466334 ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº 1501023-53.2020.8.26.0535, da Comarca de Guarulhos, em que é apelante/apelado LUAN CARLOS DA SILVA PEREIRA, é apelado/apelante MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 1ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Acolheram a preliminar suscitada pela defesa de Luan Carlos da Silva Pereira, para declarar a nulidade do processo, desde a audiência de instrução e julgamento, devendo outra audiência ser realizada, em que se oportunize a oitiva do adolescente G.G.P.S como testemunha. Por conseguinte, julgaram prejudicado o exame do recurso ministerial.V.U.", de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Desembargadores MÁRCIO BARTOLI (Presidente), FIGUEIREDO GONÇALVES E MÁRIO DEVIENNE FERRAZ. São Paulo, 17 de junho de 2021. MÁRCIO BARTOLI Relator(a) Assinatura Eletrônica (Grifo Nosso)

 

             

Ex Positis, requer o recebimento e acolhimento dos presentes Embargos de Declaração pela contradição apontada, requerendo que se retornem os autos ao juízo  a quo para oitiva das testemunhas arroladas e indevidamente dispensadas pelo juízo  a quo que muito sabem sim das denúncias sobre torturas, porque foram comunicadas oficialmente, pugnando pela reforma da decisão que julgou improcedente o Recurso de Apelação. É o que requer.

Termos em que,

Pede Deferimento.

 

João Pessoa, 30 de junho de 2025.

Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó

Advogada – OAB/PB nº 11.151

 

segunda-feira, 30 de junho de 2025

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS IV CARTA 4.2

 




"e ia ser provado que não existiu agressão com a mesma mais 20 detentas presenciol a cena em seguida ela saiu com à apenada e em menos de 3 horas ela voltou ao presidio  com um exame mostrando que não existiu agressão com a mesma. No mesmo dia as 6 horas da noite o adjunto da unidade entrou na cela da mesma agrediu e saiu dizendo agora matei a minha vontade no outro dia os direitos humanos entrou o diretor disse que se as apenadas que presenciaram falasse alguma coisa acontecia o mesmo com as que presenciaram. Emfim desde está data ela não parou de ser agredida nem um dia.

O que queremos é Justiça pra que todos os problemas desse lugar ser resolvidos.

E queremos que saia um verdadeiro exame com a certeza com a certeza de que todos aqui tem vida!"


"Socorro nos Ajude! Direitos Humanos.:

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS IV CARTA 4.1




 "João Pessoa

05.05.2013

Lamentações!


A vida de Adriana

Aqui estou contando o sofrimento de uma companheira.

Tudo começou quando ela foi pedir um atendimento médico, de lá começaram a bater nela algemada e sairam arrastando ela, pelos cabelos até o pavilhão do seguro, os acusados são os agentes com o nome de Fred e Daniel.

Chegando lá algemada e eles permaneceram batendo nela pisas do por todo o corpo, e a mesma ficou problemas mental não podendo sofrer nem um tipo de agressão em seguida chega uma agente penitenciaria pedindo pra que paracem de bater nela porque ela é um ser humano.

Em seguida pegaram ela e botaram numa cela, e a diretora, chegando no local e disse que iam levar para o exame" (continua no próximo post)

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS III CARTA 3


 "Para os direitos humanos


Eu presa passo por muitas coisas aqui dentro dessa cadeia, Quando eu fui para o castigo mim colocaram junto com "Adriana Paiva" ela estava sendo muito maltratada, ela apanhava muito eu cheguei a assinar um desacato porque aonde ela estava nem comida elas levavam, só quando elas bem queria, chegaram na cela pra dar um pente fino e não encontraram nada pegaram um balde de água jogaram na cabeça dela deram um choque e fizeram ela comer sabão e nós que estavamos com ela não podiamos fazer nada por que são muitos e nós também estavamos passando pela mesma situação eu cheguei até apanhar na cara mim deram até pontapé e levam pra delegacia por que nos presinhas não podemos falar nada, porque se nós falarmos ou pedimos qualquer coisa o o negócio delas é delegacia, castigo ou peia e mais falaram que nós não passavamos de um bocado de lixo, e de piconas, Quando ela chega bebada de madrugada, ficar chutando as presas na grade, nós somos humilhada até pela comida que não presta, e quando uma sai quase morta e o hospital é a praça nós só queremos tirar nossa cadeia e procurar os nossos direitos."

domingo, 29 de junho de 2025

PARECER IAB: PL SOBRE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS DUPLOS POR PESSOAS PRESAS PARA FINS DE REMIÇÃO DA PENA




PREZAD@S, APRESENTO PARECER DE MINHA AUTORIA PELA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS. APROVADO EM SESSÃO PLENÁRIA.

Indicação 2023 Projeto de Lei 2.822/2002

Cuida de proposta de doação de órgãos duplos por pessoas presas para fins de remição da pena.

Indicação proposta pela Confreira Dra Ana Arruti

EMENTA: PROJETO DE LEI 2.822/2022. AUTORIA DO SENADOR STYVENSON VALENTIM (PODEMOS/RN). DOAÇÃO DE ÓRGAOS DUPLOS DE PESSOAS PRESAS MEDIANTE REMIÇÃO DE PENA. PROPÕE ALTERAR O ART. 9º DA LEI 9.434/1997 E O ART. 126 DA LEI 7.210/1984. INDICAÇÃO ORIGINÁRIA COMISSÃO DE CRIMINOLOGIA DO IAB. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. VÍCIO DE CONSENTIMENTO. TORTURA. IMPOSSIBILIDADE EM CONFORMIDADE COM O ART.7º DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

1. RELATÓRIO

A Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros foi provocada para emissão de parecer sobre o Projeto de Lei (PL) nº 2.822/2022, conforme indicação originária da Comissão de Criminologia, tendo como confreira indicante a Dra Ana Arruti.

Cuida ainda a Indicação nº (xx) de análise legal do Projeto de Lei nº 2.822/2022 de autoria do Senador Styvenson Valentim (PODEMOS/RN), para que pessoas que estejam presas e sentenciadas possam ter remição de até 50% da pena total e cumprimento do restante em regime aberto, caso se torne com este propósito doador de órgãos duplos (rins e pulmão). A exigência imposta pelo Projeto de Lei em referência é que a pessoa presa já tenha cumprido pelo menos 20% da pena.

Ainda informa a referida indicação que o PL 2.822/2022 está apensado a outras propostas, citando, por exemplo o Projeto nº 1.321/2003, que no mesmo viés, propõe que “ o presidiário que se inscreva como doador vivo de órgãos , partes do corpo humano e tecidos para fins terapêuticos requerer redução de pena após a aprovação do procedimento cirúrgico”.

A justificativa do Senador Styvenson Valentim, sobre a necessidade do PL 2.822/2022, deve-se ao debate transnacional do tema e que encontraria arrimo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.

O referido PL viria a modificar o artigo 9º da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997 e a Lei de Execuções Penais.

É o Relatório, passo a opinar.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Com fincas nos artigo 3º, II do Estatuto do Instituto dos Advogados Brasileiros, artigo 69 do Regimento Interno da Casa de Montezuma, bem como da Resolução 03/2018, passa a discorrer sobre a fundamentação jurídica que embasará a conclusão do presente parecer.

A legislação brasileira trata da possibilidade de doação de órgãos duplos no artigo 9º, da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, não havendo nenhum impedimento que pessoas presas possam doar dentro das condições estabelecidas, bem como a presa grávida poderá doar voluntariamente sangue placentário e do cordão umbilical até o momento do parto, conforme o art. 9º- A da referida lei. Em momento algum, exclui a pessoa presa de atender espontaneamente ao princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio constitucional da solidariedade.

Ocorre, que em caso de doação, não poderá estar na expectativa de remição de pena pelas razões que serão expostas mais adiante, por entender-se que tal prática possa configurar torturacontra a pessoa apenada e essa autorização de doação de órgãos ser viciada por razões estranhasao senso de solidariedade.

Em caso de aprovação do referido PL 2.822/2022 e caso não sofra nenhuma modificação em nenhuma das Casas legislativas, em conformidade com a redação original, o art. 9º da Lei 9.434/1997 passará a ter seguinte redação:

“Art. 9º ......................................................................................

...................................................................................................

§ 9º É facultado ao condenado, de forma livre e voluntária, devidamente acompanhado por advogado, na presença do Juiz da execução penal e após ouvido o Ministério Público, doar órgão duplo nos termos da lei, em caráter humanitário, para fins de remição na forma da Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984.”

Igualmente os artigos 13, parágrafo único e 14 do Código Civil Brasileiro trazem a possibilidade de doação de órgãos e disposição do próprio corpo por qualquer pessoa, inclusive sem exclusão das pessoas presas, frisando que essa doação é sempre com o caráter gratuito, amparada no princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da solidariedade, justamente para evitar possíveis comercializações ou “trocas” entre doador e donatário/receptor.

A doação de um órgão duplo causa um quadro irreversível, razão pela qual, ninguém deve ser compelido a fazê-lo, não podendo ser assim constrangido, conforme inteligência do artigo 15 do Código Civil Brasileiro e tratando a legislação específica, assim como a lei substantiva civil da gratuidade do ato, sem nenhum tipo de favorecimento ou benesses.

O Projeto de Lei nº 2.822/2002 ignora que além de não haver impedimentos para que pessoas presas possam doar órgãos e disporem do próprio corpo, tal decisão é sempre motivada pelo sentimento de solidariedade, cujo princípio da solidariedade é abarcado pelo Estatuto Básico, art. 3º, I. Também despreza o referido projeto que a “barganha” com a pessoa presa para que a partir de um ato que deve ser voluntário e gratuito, possa se livrar do constrangimento do cárcere e das mazelas do sistema prisional brasileiro fere justamente o princípio constitucional da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil.

Tal projeto de lei segue a corrente de que presos são pessoas improdutivas, sem dignidade, reincidentes poder de escolha e que devem compensar a sociedade pelos males causados, nem que seja com disposição dócil de seus corpos, justificando um verdadeiro e aberrante extrativismo humano. Tal proposta caracteriza a ideia estigmatizada pela Teoria do Conflito, em especial a Teoria do Labelling Approach, e tal projeto seria uma “redenção” à pessoa presa que já traz um estigma do qual se deve buscar a remissão da sociedade (no sentido de perdão).

A remição proposta pelo Projeto de Lei nº 2.822/2022 alteraria da seguinte forma a Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984, a célebre Lei de Execuções Penais, veja-se:

“Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado

ou semiaberto poderá remir, por trabalho, por estudo ou por doação de órgão duplo, parte do tempo de execução da pena.

...................................................................................................

§ 9º No caso da doação de órgão duplo, o condenado deverá

ter cumprido 20% (vinte por cento) da pena para poder fazer uso da remição.

§ 10. Uma vez realizados todos os procedimentos necessários para fins da doação, ela será custeada pelo Estado e realizada nos termos da Lei.

§ 11. O condenado que realizar a doação fará jus a uma redução de 50% (cinquenta por cento) da pena total imposta, devendo cumprir o restante da pena em regime aberto, com as condições a serem definidas pelo Juízo da execução

§12. A remição de pena por doação de órgão duplo não se aplica na hipótese de reincidência em crime hediondo.”

Como verificado in albis, o referido projeto reforça a Teoria do Conflito com a exclusão da possibilidade de remição em caso de doação de órgãos duplos por pessoas reincidentes em crimes hediondos, fazendo assim acepção de doadores, e se contrapondo à própria justificativa do projeto que é atender aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (por parte

do donatário/receptor) e da solidariedade (por parte do doador pessoa presa). Permanece assim aprática do etiquetamento social e não ressocialização de pessoas presas.

No que tange à prática de tortura em viciar o consentimento de pessoas presas para fins de doação de órgãos, tanto o art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como art.1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 04, de 23 de maio de 1989 e promulgado pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991) não apresentam rol taxativo das práticas consideradas como tortura.

“Art. 5º “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”

“Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”

Ademais, o art. 2º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes clarifica que o rol descrito no artigo primeiro se apresenta em “numerus apertus’.

Art.2º. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringirqualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.

Seguindo o raciocínio que a prática proposta pelo Projeto de Lei nº 2.822/2002 configura tortura em tese, cita-se justamente o disposto no artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia -Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992), que corrobora com a tese em questão:

“Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas.” (Grifo nosso)

Ora, qualquer pessoa privada de liberdade não tem como consentir livremente sobre qualquer proposta que venha a acenar com a possibilidade de liberdade. Outrossim, não há como não dizer que essas pessoas presas não serão submetidas a “experiências médicas ou científicas”, uma vez que o risco de rejeição de órgãos pelo receptor, ainda que do mesmo tipo sanguíneo é de alta probabilidade, não prevendo inclusive a possibilidade de remição ainda que haja incompatibilidade pelo pretenso donatário/receptor.

Pelo Princípio da Indivisibilidade dos Direitos Humanos não se pode separar a proteção dos direitos da personalidade dos demais direitos proclamados por Tratados, Declarações ou ainda pelo costume internacional aplicados em matéria de Direitos Humanos. Outrossim, é necessário entender o conceito de vício de consentimento, razão pela qual cita-se oportunamente San Tiago Dantas.

O Projeto de Lei nº 2.822/2022 também entra na seara do Direito Civil, uma vez que a doação de órgãos duplos, ou tecidos, ou sangue, etc, tem a natureza jurídica de de negócio jurídico bilateral unilateral gratuito, isto é, um tipo inominado que se assemelha ao contrato de doação. Por tais razões, não há como concordar com doação de órgãos duplos mediante qualquer tipo de “barganha” como a proposta pelo referido projeto de lei, porque qualquer negócio jurídico bilateral unilateral gratuito importa em liberalidade daquele que faz, sem a espera de contraprestação. Cita-se por exemplo o Contrato de Barriga Solidária que é negócio jurídico bilateral unilateral gratuito e atípico, em que não é devida nenhuma contraprestação ao que gera em seu ventre o bebê. O mesmo entendimento aplica-se aos casos de doação de órgãos, sangue, etc, podendo se falar nesse caso em atendimento ao princípio constitucional da solidariedade.

Por se tratar a doação de órgãos de pessoas vivas de negócio jurídico bilateral unilateral gratuito, o consentimento não pode ser viciado sob pena de invalidade do próprio negócio jurídico. Não pode haver máculas à declaração de vontade. Conforme ensinamentos do civilista San Tiago Dantas ia vontade é a substância do ato jurídico, senão vejamos:

“Muito comumente os atos jurídicos apresentam defeitos que os tornam anuláveis, os quais têm a sua sede na declaração de vontade. A vontade é a substância do ato jurídico. De modo que, se a sua manifestação não corresponde ao que o agente verdadeiramente quer, ou, se o querer do agente estava travado, em consequência de uma causa qualquer capaz de tolher o seu arbítrio, o ato se apresenta viciado e a conseqüência é que a parte por ele prejudicada, ou a própria parte, cuja vontade não estava sã, pode promover a sua anulação pelos meios estabelecidos na lei.” (grifo nosso)

Ora, em casos irreversíveis como a doação de um dos órgãos públicos, corre o risco do Estado sofrer demandas judiciais com fins indenizatórios, haja vista que a doação de órgão não pode ser desfeita. Segundo ainda San Tiago Dantas sobre vício de consentimento:

A conseqüência, então, destes vícios e defeitos que o ato jurídico pode apresentar quanto à vontade é torná-lo anulável. Nem sempre a repristinação é possível, ou porque foram praticados atos que, em si próprios, não podem ser modificados nos seus efeitos, principalmente, ou porque as coisas que se desligaram de umpatrimônio para outro, já não podem ser mais repostas no seu estado antigo e, assim, em vez de uma repristinação, tem lugar uma indenização; compõe-se pecuniariamente o prejuízo que houve. (grifo nosso)

Ainda, analisando San Tiago Dantas sobre os vícios do consentimento ou da vontade, o caso de doação de um dos órgãos duplos por pessoas privadas de liberdade e já sentenciadas, aplicando-se os ensinamentos do grande civilista ao entendimento aqui apresentado, a vontade estaria “perturbada”, manifestada sob condições de medo, haja vista a condição de vulnerabilidade da pessoa presa que emite manifestação de vontade, podendo caracterizar coação, já que sua autodeterminação encontra-se bastante reduzida.

“Classificam-se os defeitos jurídicos da vontade em dois grandes grupos. No primeiro grupo se colocam os casos em que há discordância entre a vontade e a declaração de vontade; em que se não apresenta defeito algum, na vontade, delineou-se esta claramente na consciência do agente, mas, no momento de exprimir a vontade. O agente, por erro, ou propositadamente, exprimiu coisa diversa daquela que estava no seu ânimo. Este é o primeiro grupo de defeitos que consistem na discordância entre a vontade e a declaração. O segundo grupo que se chama o grupo dos vícios, reúne os casos em que a própria vontade está perturbada, de tal maneira que, ou positivamente o agente não quis aquilo que manifestou ou, então, foi levado a definir a sua vontade num sentido diverso daquele para o qual se orientaria, se não interferissem as causas do vício .

(...)

Veja-se agora os vícios da vontade. O primeiro a considerar-se é a coação que é a deliberação debaixo do medo. Estando submetida a uma ameaça ou a uma violência atual, a pessoa decide-se a enunciar uma vontade que, na verdade, não corresponde ao seu querer. E a coação.

Tem-se aí a vontade mesma viciada; não é a declaração, pois não há a menor discordância entre a vontade e a declaração; a pessoa declara realmente aquilo que resolveu declarar, mas apenas resolveu em conseqüência de uma ameaça que foi mais forte que a sua própria liberdade.”

Micheletti e Lamy ao mencionarem os princípios das Regras de Mandela informam que há uma prejuízo do direito à autodeterminação de pessoas presas, justamente por sua condição de pessoa privada de liberdade, fundamentando a tese de que isso implica no livre consentimento da pessoa presa para quaisquer atos que possam estar relacionados à possibilidades invasivas de remição da pena, como o proposto pelo Projeto de Lei nº 2.822/2022

“Dentre seus princípios, tem-se que “todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido à tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância”. Ademais, explicita-se que o encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade.”ii (grifo nosso)

A interpretação sistemática utilizando-se Direito Civil, Direitos Humanos e Direito Constitucional não é despicienda, uma vez que também na análise da aplicação de normas que visem coibir violação de Direitos Humanos, aplica-se a norma mais favorável à pessoa humana, conforme citação da Magistrada Flávia Piovesan sobre entendimento do Ministro Celso de Mello:

“Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico

básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana (...).”

O Pacto dos Direitos Civis e Políticos trouxe justamente como novidade, segundo Konder Comparato, a equiparação à tortura de experimentações médico-científicas sem o consentimento da pessoa ou ainda sem as devidas informações dos riscos e consequências.

“A grande novidade da proibição constante do artigo 7º do Pacto consiste em assimilar à tortura , ou aos tratamentos penais cruéis, desumanos e degradantes, a submissão de alguém , sem o seu consentimento, a experimentações médico-científicas. É claro que essa disposição refere-se, antes de mais nada, às práticas atrozes perpetradas pelos Estados totalitários, notadamente o Estado nazista, em seus campos de concentração. Mas ele abrange também pesquisas médicas e cientificas de alto poder ofensivo, levadas a efeito em alguns Estados Democráticos, sem que pacientes ou a população soubessem do que se tratava”iii. P. 305

Apesar do entendimento sobre “consentimento” não especificar os vícios da manifestação de vontade, não há que se falar em derrogação do dispositivo previsto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos. No caso em questão, não há possibilidade de derrogar o previsto no artigo 7º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, em favor do Projeto de Lei 2.822/2022 ,mesmo em nome da aplicação de uma norma supostamente mais favorável, conforme possa fazer crer o referido projeto, haja vista evocar as expressões remição, solidariedade e dignidade da pessoa humana, haja vista que segue-se o entendimento da assaz citada Flávia Piovesan, uma vez que não é autorizada derrogação, ainda que temporária da proibição de tortura.

“Apenas, excepcionalmente, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos admite a derrogação temporária dos direitos que enuncia. À luz de seu art. 4º, a derrogação temporária dos direitos fica condicionada aos estritos limites impostos pela decretação de estado de emergência, ficando proibida qualquer medida discriminatória fundada em raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. Ao mesmo tempo, o Pacto estabelece direitos inderrogáveis, como o direito à vida, a proibição da tortura e de qualquer forma de tratamento cruel, desumano ou degradante, a proibição da escravidão e da servidão, o direito de não ser preso por inadimplemento contratual, o direito de ser reconhecido como pessoa, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, dentre outros. Isto é, nada pode justificar a suspensão de tais direitos, seja ameaça ou estado de guerra, perigo público, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos permite ainda limitações em relação a determinados direitos, quando necessárias à segurança nacional ou à ordem pública (ex.: arts. 21 e 22)”

Considerando ainda o perfil da população carcerária atualmente no Brasil, pode-se ainda dizer que o referido Projeto de Lei nº 2.822/2022 irá recair sobretudo sobre a população negra do país (pretos e pardos), que em virtude do racismo estrutural e institucional também se vê alijada de uma boa qualidade na prestação de serviços de saúde, em que não se consideram especificidade de saúde da população negra, não tratando o referido processo inclusive da assistência médica que deve ser dada aos doadores em virtude do quadro irreversível que se forma com a doação de um órgão duplo (no caso, pulmão ou rim). Também pode-se dizer que é um Projeto de lei racista, classista e aporofóbico, haja vista que a maior parte da população carcerária no Brasil tem o perfil a seguir:

“As prisões no Brasil: espaços cada vez mais dedicados à população negra do país

Os dados sobre encarceramentos relativos à raça/cor disponibilizados pelo 14º Anuário Brasileiro indicam alta concentração entre a população negra. Em 2019, os negros representaram 66,7% da população carcerária, enquanto a população não negra (considerados brancos, amarelos e indígenas, segundo a classificação adotada pelo IBGE) representou 33,3%. Isso significa que, para cada não negro preso no Brasil em 2019, dois negros foram presos. E um pouco mais que o dobro, quando comparado aos brancos.

Ainda que o maior encarceramento de pessoas negras não seja propriamente uma novidade, ao se analisar a série histórica do dado raça/cor dos presos no Brasil, fica explicito que, a cada ano, esse grupo representa uma fração maior do total de pessoas presas. Se, em 2005, os negros representavam 58,4% do total de presos, enquanto os brancos eram 39,8%, em 2019, essa proporção chegou a 66,7% de negros e 32,3% de brancos. A taxa de variação nesse período mostra o crescimento de 377,7% na população carcerária identificada pela raça/cor negra, valor bem superior à variação para os presos brancos, que foi de 239,5%. Ou seja, as prisões no país se reafirmam, ano a ano, como um lugar para negros. No Brasil, se prende cada vez mais; no entanto, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. Existe, dessa forma, forte desigualdade racial no sistema prisional, materializada não somente nos números e dados apresentados, como pode também ser percebida concretamente na maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aos negros. Aliadas a isso, as chances diferenciais e restritas aos negros na sociedade, associadas às condições de pobreza que enfrentam no cotidiano, fazem com que se tornem os alvos preferenciais das políticas de extermínio e encarceramento do país.”iv

Infere-se que o Projeto de Lei nº 2.822/2022 deve ser rejeitado por configurar a possibilidade de prática de tortura, violação do princípio da dignidade da pessoa humana e ir contra a possibilidade de autodeterminação, viciando o consentimento da pessoa presa. Outrossim, tal proposta esbarra inclusive nos direitos da personalidade previstos no art. 15 do Código Civil Brasileiro.

Nesse mesmo diapasão deve ser rejeitada a referida proposta legislativa por ferir tratados internacionais de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário e ratificado pelo Congresso Nacional, a saber: Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 1966.

3. CONCLUSÃO

Ex Positis, infere-se que o Projeto de Lei nº 2.822/2022 deve ser rejeitado por configurar a possibilidade de prática de tortura, experimento científico, violação do princípio da dignidade da pessoa humana, atenta contra a possibilidade de autodeterminação e direitos da personalidade, viciando o consentimento da pessoa presa.

Por outro lado, não há nenhuma proibição legal que impeça da pessoa presa dispor e doar órgãos duplos, desde que seja por mera liberalidade, dentro do princípio constitucional e familiar da solidariedade, desde que as razões sejam estranhas ao Projeto de Lei nº 2.822/2022.

Requer, portanto, a rejeição da proposta e que cópia do parecer seja remetido ao Relator do Projeto de Lei nº 2.822/2002, Senador Otto Alencar (PSD-BA) e para a Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

João Pessoa, 26 de junho de 2023

Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó Membro Efetivo – OAB/PB 11.151

i DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Vol. 1, 1979.

ii MICHELETTI FELÍCIO, Érick Vanderlei e LAMY, Marcelo. O direito à saúde no ambiente prisional brasileiro: reflexões sobre o Dever Ser e o Ser. ABRACRIM, 2022.

iii COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 12 d. Saraiva: São Paulo, 2019.

iv VARGAS, Tatiane. https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418 Acessado em 26.06.2023