segunda-feira, 14 de outubro de 2019

ANÁLISE DO DISCURSO DE BOLSONARO NA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU




O Presidente iniciou seu discurso  na Assembleia Geral da Onu, em 23 de setembro de 2019, já nos primeiros 20 segundos agradecendo a Deus pela vida e pela missão de presidir o Brasil para que a partir dessa missão tenha a oportunidade de restabelecer a “verdade”. Apresenta um “novo Brasil” que como Fênix está ressurgindo após estar a beira do socialismo, com o discurso de que está legitimado pelo apoio popular nessa reconstrução, trabalhando arduamente para reconquistar a confiança mundial. Isso seria feito a partir da diminuição, segundo ele, da violência e de políticas desburocratizadoras, mas ao estilo dos discursos do ano de 1979 quando o Regime Militar adotou a mini-Reforma Desburocratizadora e meados dos anos 90, quando teve início a Reforma Gerencial no Brasil. Atrasados estamos em quase 20 anos e há 40 anos em um primeiro momento, pois mais a frente verifica-se em todo seu discurso ausência de menção a participação popular na gestão da coisa pública, desconhecendo que já passamos do Estado Gerencial-Societal. Coloca a culpa da corrupção do país no socialismo, ignorando que antes de 2003 o país já vinha de um modelo de Estado com menos de 70 anos de divisão oficial entre o Estado patrimonialista e o Estado Burocrático, ignorando que a corrupção e o despotismo em confundir o público e privado no Brasil é cultural e não ideológico. Considera ainda a política “socialista” a causa da recessão no país, desconsiderando obviamente que o país passou por crise institucional e política recentemente que alçou o projeto atual dentro do vácuo político que se formou, sem ao menos ser apresentada contra a ex-Presidente Dilma Roussef alguma denúncia formalizada pelo Ministério Público Federal. Em seu discurso ainda fala dos ataques aos valores religiosos e familiares impostos pelo governo “socialista” o que com certeza ameaçaria as tradições na qual se constituiu o Brasil no seu entendimento. Valores religiosos, leia-se cristão, uma vez que apesar de oficialmente laico, o Estado brasileiro desde o período da campanha presidencial tem como ponto de apoio setores religiosos mais conservadores que levam a confusão de muitos, inclusive não cristãos, entre os conceitos de laicismo e laicidade. Sem a mínima diplomacia, expõe os “podres e feridas” de dentro da “própria casa” quando se refere ao PT e ataca países da América como Cuba e Venezuela, intrometendo-se em questões internas e avaliando o Programa Mais Médicos como pernicioso pelo viés ideológico sem ter conseguido até então em 09 meses de governo, suprir a ausência de médicos em estados onde a procura do exercício profissional por esses profissionais seria mais remota. Fala em defesa dos médicos cubanos acerca dos direitos trabalhistas e fundamentais, mas esquece dos próprios discursos contra os direitos da mulher no mercado de trabalho. Ataca a ONU em seguida além de ONGs de Direitos Humanos no Brasil como se fossem a favor de trabalho escravo tomando por base sempre o modelo cubano. Ataca ainda o regime cubano alegando que este nos anos 1960 enviou vários agentes para diversos países para colaborar para a implantação de ditaduras. Omite realmente que a Revolução Cubana é do ano de 1959, muito recente naquele período ainda, omitindo também acordos internacionais, pelo menos na América Latina, feitos entre esses países latino-americanos e os EUA por meio do Programa Aliança Para o Progresso, exposto na Carta de Punta Del’ Este, que interferiu significativamente na vida política, econômica e legislativa desses Estados, sem a contrapartida de recursos prometidos com a criação do Banco Internacional de Desenvolvimento – BID. Desconhece que a Guerra Fria teve dois lados, da Ordem Econômica bipolar estudada na escola ainda na segunda parte do ensino fundamental, além é claro de não expor a responsabilidade norte-americana pelas mazelas impostas naquele período (anos 1960) com forte concentração de renda na década seguinte e expansão de infraestrutura (fator capital) e multinacionais sem a devida contraprestação aos mais excluídos. Fala da morte de civis e militares brasileiros a partir dos anos 1960, esquecendo dos torturados pela Ditadura Militar no Brasil e restante da América, apontando tais civis e militares responsáveis pela grande façanha de expulsar o socialismo de caluniados. Quando fala da Venezuela em seguida também volta a satanizar o socialismo e esquece que independentemente da forma como se deram as eleições naquele país, e que o objetivo norte-americano é o petróleo venezuelano, esquece de falar dos embargos e sanções econômicas impostas aquele país pelos EUA. Ainda em parceria com os EUA trabalha para que outros países sul-americanos não experimentem o modelo socialista desconhecendo o conceito de autodeterminação dos povos. Ataca a imprensa brasileira como antro comunista. Realça o neoliberalismo e novamente faz um retorno à gestão gerencial sem participação popular. Fala de acordos internacionais com a União Europeia por meio do EFTA. Acordos que serão firmados nos próximos meses. Os dois maiores acordos do país foram firmados entre o MERCOSUL-Europa e com o EFTA. Fala da adesão a OCDE adotando práticas mundiais de ordem financeira e de proteção ambiental, mas não diz quais. O ponto importante em que começa a desconstruir as lutas históricas de minorias começa a partir do 6’53’’ quando se dirige a Ysani Kalapalo, como representante indígena e legitimando seu discurso para falar em Amazônia. Sendo que os Kalapalos são do Alto-Xingu, área geográfica não alcançada exclusivamente pela geografia amazônida, pois se trata de uma área de transição geográfica entre o cerrado e a Amazônia. No seu discurso fica claro que relaciona Amazônia à figura do indígena. Fora da Amazônia talvez não haja indígenas nem nações representativas. Pela fala disseminada pelos seguidores do Presidente, com certeza aquela é indígena em detrimento dos demais autodenominados assim, porque tem os fenótipos exigidos pela nossa sociedade não-indígena para dizer quem é e quem não é índio. Desconhecem que as nações indígenas têm o direito a autodeterminação e eles serão os responsáveis por dizerem quem são ou não indígenas dentro da nação a que pertencem, da mesma forma que a Constituição Federal tem autonomia para dizer quem é e quem não é brasileiro nato. Isso para atacar os discursos sobre a tutela da floresta amazônica, em que realmente deve ser respeitada a soberania brasileira no que diz respeito à Amazônia Brasileira, mas cujo patriotismo alegado pelo palestrante, é na verdade o reflexo de um chauvinismo que não é tão nacionalista assim quando mais adiante fala em soberania, mas elogia Donald Trump que é presidente de um país armamentista, que cultiva conflitos em vários países do mundo. Aliás, segundo o Plano de Governo "O Caminho da Prosperidade", o discurso do então candidato era estreitar parcerias comerciais com países armamentistas, tidas como “Democracias Importantes”: EUA, Israel e Itália. Culpa a mídia mais uma vez como sendo a responsável por propalar fakenews sobre os incêndios na Amazônia e despertar cobiça de outros países. A crítica a imprensa é recorrente assim como a defesa intransigente de valores “tradicionais”, desconstruindo a luta de minorias pelo reconhecimento de direitos. Fala dos 14% do território nacional como aspecto negativo, como se os “nativos” não fossem tratados como seres humanos e não usufruíssem de nada da sociedade não-indígena. Simplesmente ignora a Teoria do Indigenato e do Fato Indígena, ambas não tendo impedimento para coexistirem, embora desde o Governo Dilma tenha sofrido a desconstrução da Teoria Constitucional do Indigenato, teoria alçada ao texto constitucional atual fruto da militância ferrenha e valorosa indígena da primeira metade dos anos 80 até culminar no art. 231 da CF/88. Trata-se de uma luta não reconhecida e desqualificada pelo discurso de Bolsonaro quando mais adiante ataca o líder indígena Raoni Metutikre como a serviço de líderes internacionais de olho na Amazônia. Os “mesmos direitos” (dos "brancos") são extensivos aos indígenas, informando que não aumentará para 20% da área do território nacional, confirmando o fim da Teoria do Indigenato. Ainda utiliza a própria diversidade entre as nações indígenas contra esses próprios povos para desconstruir a luta social que teve grande projeção na década de 1980 como já dito. Ataca as ONGs amazônidas que lidam com a questão indígena, diminuindo a condição indígena a de selvagens. Ou seja, desconhece a realidade de vários indígenas que estudam, trabalham, moram em casa de alvenaria, etc, porque limita sua visão do índio como aquele que corresponda a certos fenótipos e cultura. Cabe mais uma vez ao “branco” dizer quem é índio nessa fala. “O índio não quer ser latifundiário pobre sobre terra rica”, segundo ele, porque citando o exemplo das Reservas Ianomami e Raposa Serra do Sol, fala da fertilidade das terras amazônidas, como se a terra amazônida em Roraima não tenha se limitado a pasto com o Regime Militar e plantação de arroz. Fala de propósito da Raposa Serra do Sol porque o STF reconheceu a aplicação da Teoria do Fato Indígena em detrimento da Teoria do Indigenato quando ambas podem coexisitir, quando se verifica por exemplo, a posse de grupos étnicos mais recentes vindos da região das Guianas. Fala da abundância de minerais na Reserva Ianomami. Lê uma carta que direcionada em apoio a Yzani Kalapalo, hoje alçada a representante dos indígenas nacionais, desmerece sem citar a figura de Raoni Metuktire, para legitimar a nova política indigenista de por fim à Teoria do Indigenato, em nome de 52 etnias. Reclama das políticas sociais como Bolsa Família como sendo sinônimo de pobreza e não de política desmercatilizadora de redistribuição de renda. Logo depois fala nas “parcerias” para explorar essas áreas, logo não se trata de defesa de soberania mas quem poderá ou não explorar a Amazônia dentro do novo modelo ideológico. Amaldiçoa os presidentes brasileiros anteriores pelo socialismo, exaltando Sérgio Moro, ex-juiz e atual Ministro da Justiça, que ferindo o princípio da imparcialidade e adotando o modelo inquisitorial, ainda que estivesse diante de esquemas de corrupção, fragiliza todo o conceito de segurança jurídica quando o magistrado é permeado por questões ideológicas seguindo a risca seus escritos, como se profeta fosse, conforme se infere das "Considerações sobre a Operação Mani Pulite" de 2003. Aliás, no referido Plano de Governo "O Caminho da Prosperidade", nem a palavra “índio” é localizada se for pesquisado. Logo, não se pensaram políticas indigenistas para o setor, nem de uma minoria como a população negra no que tange a luta pelo reconhecimento de direitos. Com um passe de mágica parece que tornou o Brasil mais seguro. Em sua fala fica claro quando fala da possibilidade de ingresso de turistas cujos países foram dispensados de visto como forma de “hospitalidade” do povo brasileiro, escancarando as portas para parceiros comerciais vestidos de turistas para turistar a Amazônia brasileira. Fala da violência contra policiais militares que foi diminuída em 2019, reduzindo em 20%. Não parece porque as causas da violência e dos confrontos urbanos continuam os mesmos. Aliás, ignora os 80 tiros dados pelo Exército em pai de família negro Evaldo Rosa dos Santos além de outras mortes nos morros cariocas em que as crianças são as principais vítimas. Fala em redução da violência, mas se esquece do aumento do feminicídio. Inclusive no Plano de Governo “O Caminho da Prosperidade” não consta a palavra feminicídio. Aliás a única política do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos tem é a obsessão pela tal “ideologia de gênero”, esquecendo de tratar de políticas para as mulheres. Sem falar que a postura é de escracho com a figura de Marielle Franco por vários setores que prestam solidariedade ao atual governo, desconsiderando o fato da mesma ter sido vítima de violência, juntamente com o motorista Anderson Pedro Gomes, de esquemas milicianos da cidade do Rio de Janeiro. Com relação ao combate aos ataques religiosos, fala dos ataques no exterior e esquece dos ataques aos terreiros de umbanda e candomblé no Brasil. Fala dos cristãos e pessoas de outras religiões que perdem vidas devido a fé pelo mundo. Mas esqueceu dos terreiros brasileiros. Fala das missões das Forças Armadas brasileiras em diversos países e a necessidade de expansão mostrando o aspecto militarista do governo como política estrangeira. A ampla agenda nacional para retomar a imagem internacional e parcerias internacionais, fala de Davos, mas se estende com a parceria norte-americana, um dos países armamentistas. Fala da ida ao Chile e o protagonismo brasileiro para a América do Sul, da ida a Israel, outra “democracia importante” armamentista, ida a Argentina para parcerias na América do Sul e de futuras visitas aos países do Oriente Médio e Extremo Oriente. Os países árabes parceiros são aqueles que se afinam aos EUA. Fala dos sistemas ideológicos que dominaram meios acadêmicos, mídias, etc, satanizando o que chamam de “ideologia de gênero”, como se houvesse perversão sexual de crianças por meio da escola. Expressa que isso coloca em risco a “família” brasileira, desconhecendo a pluralidade de arranjos familiares, seguindo o modelo cisheteronormativo em detrimento dos direitos de minorias conquistados a duras penas. E essa ideologia seria tão poderosa que teria entrado nas almas das pessoas para expulsar Deus (o cristão) e a dignidade (porque quem não estiver no modelo cisheteronormativo não é digno), faltando clamar por uma sessão de exorcismo. Fala da famosa facada e mais uma vez atribui a Deus o milagre da sua recuperação, esquecendo da falta de empatia que demonstrou com a morte de Mestre Moa do Katende que foi assassinado com 13 facadas por ser eleitor do PT por um extremista bolsonarista. Talvez por não ser um “escolhido de Deus”, do Deus que salvou e colocou no Planalto o atual presidente, Mestre Moa não tenha conseguido o livramento. Por fim, a ONU pode ajudar a derrotar o materialismo (leia-se socialismo marxista), ignorando a autodeterminação dos povos, materializando o Evangelho de João com um sentido totalmente fora do contexto espiritual da tradição joanina tendo poupado a todos de subverter para o sentido político a tripla tradição sinóptica nas suas citações. O problema do extremismo de direita é justamente desconsiderar a existência de pessoas e lutas, tornando-as invisíveis. O discurso apresentado em 23.09.2019 na Assembleia Geral da ONU pelo Presidente Bolsonaro é o ultradireitismo excludente de minorias, além de colocar o Brasil subjugado aos interesses norte-americanos.

Laura Berquó

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