Indicação nº 23/2024
Resolução
Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024.
Cuida de Resolução Conjunta do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional LGBTQIA+ (Conselho
Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais
e outras) sobre parâmetros
para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+
em privação de liberdade
no Brasil Indicação proposta
pela Confreira Dra Marcia Dinis
RESOLUÇÃO CONJUNTA CNPCP/CNLGBTQIA+ Nº 2 . INDICAÇÃO
ORIGINÁRIA COMISSÃO DE CRIMINOLOGIA DO IAB. NORMA TÉCNICA. PESSOAS LGBTQIAP+ PRESAS. AUTODETERMINAÇÃO E DIREITO
CONGÊNITO DE PESSOAS TRANSGÊNERAS. DIREITOS HUMANOS. DIREITOS DA
PERSONALIDADE. TORTURA.
1.
RELATÓRIO
A Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos
Advogados Brasileiros foi provocada para emissão de parecer sobre a Resolução
Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26
de março de 2024, conforme indicação
originária da Comissão de Criminologia, tendo como confreira indicante
a Dra Marcia Dinis.
Cuida ainda a Indicação nº 23/2024 de análise legal da
Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº
2, de 26 de março de 2024, que “estabelece parâmetros para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade no Brasil”
Segundo a douta indicante, Dra Marcia Diniz, a referida resolução trata de parâmetros para
acolhimento de pessoas LGBTQIA+ em situação de privação de liberdade, bem como de regras
referentes à condução da audiência de custódia, bem como a
criação e implementação de estabelecimentos
penais específicos, alas e celas
de convívio LGBTQIA+.
Referentemente à custódia, além da determinação da criação e/ou implementação de estabelecimentos
penais específicos, alas
e celas de convívio LGBTQIA+ nas
unidades penitenciárias, alude “que deverá
ser regido pela identidade de gênero da pessoa custodiada e, em menor
grau, por sua orientação
sexual,” com base na autodeclaração” sem que jamais se desprivilegie quaisquer direitos
relacionados à execução penal”.
Informa ainda a Indicante que a Resolução em estudo prevê questões relacionadas aos
direitos da personalidade como o direito
ao nome social
no sistema penitenciário e a integridade da intimidade com relação às revistas íntimas vexatórias de visitantes e das próprias pessoas presas.
Informa também que a referida Resolução
“dispõe também sobre acesso a itens e direito à saúde, educação, trabalho, assistência social e religiosa, bem como auxílio-reclusão, além de conter
dispositivos voltados à formação continuada dos servidores públicos e à
promoção da cidadania”.
Por esses pontos elencados, a Dra Márcia
Diniz acredita que o tema é de extrema relevância e que a Casa de Montezuma por meio de suas comissões (Direitos Humanos, Direito Penal e
de Criminologia) não deve se abster da análise de relevante documento, sendo
esta a razão justificadora de sua indicação.
É
o Relatório, passo a opinar.
2.
FUNDAMENTAÇÃO
Com fincas
nos artigo 3º, II do Estatuto do Instituto dos Advogados Brasileiros, artigo 69
do Regimento Interno da Casa de Montezuma, bem como da Resolução 03/2018, passo a discorrer sobre a
fundamentação jurídica que embasará a conclusão do presente parecer.
A fundamentação será de natureza complementar ao já expresso
na resolução em
estudo, adstrindo-se somente
à matéria de Direitos Humanos,
deixando a cargo das Comissões de Direito Penal e de Criminologia do Instituto dos Advogados Brasileiros a análise da legislação penal e
penitenciária.
Mesmo assim, às legislações apresentadas
como fundamentação na Resolução Conjunta, há a necessidade
de se fazer considerações e críticas em alguns aspectos, bem como crítica
à via eleita para tratar de alguns procedimentos, devendo se recomendar ao final envio de Projeto de Lei de iniciativa do Poder Executivo, para que lei ordinária confira força coercitiva às pretensões da
Resolução.
Ressalte-se
que os direitos sociais e
da personalidade elencados na Resolução em tela já se encontram contemplados no ordenamento jurídico brasileiro, mas que para isso há a necessidade de uma interpretação sistemática do Direito
em vigor.
Portanto, considerando o próprio
ordenamento nacional que embasa perfeitamente o direito da população
carcerária LGBTQIA+, bem como os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados, foram citados pela Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+
nº 02/2024:
a)
Art. 1º, III, Art.3ª, I e IV, Art. 5º, incisos III, XLI, XLVI, XLVII, XLVIII
e XLIX, LXXVIII,
§§
2º e 3º, da Constituição Federal de 1988;da Constituição Federal de 1988;1
![]() |
1 Art. 1º
A República Federativa
do Brasil,
formada pela
união indissolúvel
dos Estados e
Municípios e
do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III -
a dignidade da
pessoa humana;
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil: I
- construir uma sociedade livre, justa e solidária;
IV - promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Art. 5º Todos
são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
III - ninguém
será submetido a
tortura nem a tratamento
desumano ou degradante;
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais; XLVI - a lei regulará
a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a)
privação ou
restrição da
liberdade;
b)
perda de bens;
c)
multa;
d)
prestação social
alternativa;
e)
suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas:
a)
de morte,
salvo em
caso de
guerra declarada,
nos termos
do art.
84, XIX;
b)
de caráter
perpétuo;
c)
de trabalhos
forçados;
d)
de banimento;
e)
cruéis;
b) Declaração
Universal dos
Direitos Humanos (1948);
c)
Pacto Internacional
de Direitos
Civis e Políticos
(1966);
d) Pacto
Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais
e Culturais (1966);
e)
Protocolo de
São Salvador
(1988);
f)
Declaração da Conferência Mundial
contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban,
2001);
g)
Regras das Nações Unidas para o tratamento
de mulheres presas e medidas não privativas
de liberdade para mulheres
infratoras (Bangkok, 2010),
h)
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos conhecidas como Regras de Nelson
Mandela (2015)
i)
Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade (Tóquio, 1990);
j)
Princípios de Yogyakarta e sua reedição sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero (Yogyakarta, 2006; 2017);
k) Convenção
Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica).
Também para fins de esclarecimento da
terminologia utilizada no parecer, será utilizada a palavra pessoa trans* (com asterisco) ou Transgêneras, como termo “guarda – chuva” para pessoas
não-binárias, transmaculinas, mulheres trans e travestis, conforme conceituação contida
na Cartilha O Ministério Público e os Direitos LGBT2 do Ministério Público
Federal conjuntamente com o Ministério Público do Estado do Ceará:
“Transgêneras é a expressão “guarda-chuva” utilizada para designar as
pessoas que possuem uma identidade de gênero diferente daquela correspondente ao sexo biológico.” (2017, p.14)
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza
do delito, a idade e o
sexo do apenado;
XLIX -
é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
2 file:///C:/Users/Windows/Downloads/Cartilha_MP_direitos_LGBT.pdf
A norma sob
análise, isto é, a
resolução, possui natureza
de ‘norma técnica’, razão
pela qual não pode ser considerada uma norma jurídica, por
faltar-lhe a coercitividade necessária, consoante ensimanento de San Tiago
Dantas:
“Normas Técnicas - Numerosas são as normas técnicas, os conselhos, as recomendações que
existem nos diplomas
legislativos, isto é, muito da
feição do espírito moderno. Tem-se logo de compreender que todos esses
dispositivos não pertencem à categoria das normas jurídicas no Código Civil, no
Código Comercial, nem no Código Processual. Nas leis sobre o direito privado não são comandos
as normas técnicas, embora existam.
Onde elas são abundantíssimas, é no campo do direito administrativo. Aí se encontram a cada passo as leis administrativas
recheadas de conselhos, recomendações princípios admonitórios, que o legislador
ali colocou para orientar os seus funcionários ou os próprios
súditos do Estado, mas que não são jurídicas, não são comandos munidos
de sanção”3. (1977,
p.72)
Por essa razão,
entende ser necessário que lei específica trate dos pontos
elencados sobre audiência de custódia, alterando o Código de Processo Penal,
a exemplo da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a célebre Lei do Pacote Anticrime, embora já existisse previsão no artigo 3º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015 do Conselho Nacional
de Justiça - CNJ4
Segundo o art. 2º da Resolução Conjunta
CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024,
o magistrado na audiência de custódia ou em qualquer
fase do procedimento penal deverá com base no
critério exclusivo da autodeclaração da pessoa presa informar-lhe os direitos que lhe
assistem:
“Art. 2º O reconhecimento da pessoa como parte da população
![]() |
3 DANTAS, San Tiago. Programa
de Direito Civil.
Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro,
1977.
4 Em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/audiencia-de-custodia-lei-n-13964-de-24-de-dezembro-de- 2019/821628258
LGBTQIA+ será feito exclusivamente por meio de autodeclaração,
que deverá ser colhida pelo(a) magistrado(a) em audiência,
em qualquer fase do procedimento penal, incluindo a audiência de custódia,
até a extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena, garantidos
os direitos à privacidade e à integridade da pessoa declarante. Nos casos em
que o(a) magistrado(a), por qualquer meio, for informado(a) de que a pessoa em
juízo pertence à população LGBTQIA+, deverá cientificá- la acerca da
possibilidade da autodeclaração e informá-la, em linguagem acessível, os direitos e garantias que lhe assistem.
Parágrafo único. A informação autodeclarada poderá ser
armazenada em caráter restrito, ou mesmo ser mantida sigilosa.”
Há um grande debate sobre a coercitividade dessas resoluções, sejam elas oriundas de Conselhos de
políticas públicas, sejam elas oriundas do próprio CNJ e/ou CNMP, embora haja
previsão constitucional a respeito desses dois últimos5, isto porque
é questionável o poder regulamentar de tais conselhos, conforme entedimentos de Streck, Sarlet e Clève:
“A constitucionalidade lato sensu de ambos os Conselhos já
foi afirmada pelo Supremo
Tribunal Federal. A discussão que se põe agora diz respeito aos limites do
poder regulamentar dos Conselhos, o que implica necessariamente discutir a natureza
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5 CF/88. Art. 103-B.
O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de
2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e
financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos
juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo
Estatuto da Magistratura: I - zelar
pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo
expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante
provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los,
revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; Art. 130-A.
O Conselho Nacional
do Ministério Público
compõe-se de quatorze membros nomeados pelo Presidente da República,
depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um
mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: § 2º Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o
controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do
cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe: I zelar pela
autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir
atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante
provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público
da União e dos Estados, podendo desconstituí-los,
revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato
cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos Tribunais de Contas;
jurídica de suas resoluções, isto é, o questionamento acerca do
poder de emitir resoluções com força de lei. (...).Tendo a mesma ratio, as diretrizes
que norteiam ambos os Conselhos são idênticas,
registrando-se apenas a especificidade constante no Conselho Nacional de
Justiça, que estabelece a competência de zelar pelo cumprimento do Estatuto da
Magistratura, enquanto no caso do Conselho Nacional do Ministério Público essa
questão não está explicitamente estabelecida. Essa sutil diferença - cujas
conseqüências, poderão ter reflexos em outros campos - não significa que haja tratamento diferenciado do constituinte
derivado no que diz respeito à legitimidade de "legislar" por parte dos dois
Conselhos, notadamente quando em
causa restrições a direitos e
garantias constitucionais, inclusive e notadamente - e isto sempre
foi muito caro para ambas as Instituições (Poder Judiciário e Ministério
Público) - as garantias funcionais e institucionais. Daí a necessária discussão acerca dos limites
para a expedição de "atos regulamentares" (esta é a expressão constante na
Constituição para os dois Conselhos). Com efeito, parece um equívoco admitir que os Conselhos possam,
mediante a expedição de atos regulamentares (na especificidade, resoluções), substituir-se à vontade geral (Poder
Legislativo) e tampouco ao próprio Poder Judiciário, com a expedição, por exemplo, de "medidas cautelares/liminares". Dito de
outro modo, a leitura do texto constitucional não dá azo a tese de que o constituinte derivado tenha
"delegado" aos referidos Conselhos
o poder de romper com o princípio da reserva de lei e de reserva de jurisdição”. (STRECK et alli , 2006)6
Porém, a Constituição Federal
de 1988 e Tratados Internacionais citados nos
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6 STRECK, Lênio, SARLET, Ingo Wolfgang, CLÊVE, Clèmerson Merlin. In: https://www.migalhas.com.br/depeso/20381/os-limites-constitucionais-das-resolucoes-do- conselho-nacional-de-justica--cnj--e-conselho-nacional-do-ministerio-publico--cnmp
Considerandos da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024, bem
como outros não citados, são suficientes
para garantirem os direitos humanos da pessoa LGBTQIA+ presa, direitos da personalidade
e demais direitos citados
como assistência religiosa, médica e de seguridade social, além de coibirem tortura pela negação da autodeterminação de pessoas
transgêneras (e autodeclaras cis e homossexuais/bissexuais) para fins de
proteção da população LGBTQIA+ encarcerada,
sendo em princípio tais normas jurídicas suficientes para prevenção
da homotrasnfobia no sistema penitenciário.
O segundo ponto é que a referida Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024, já se encontra
em vigor desde a data de sua publicação, haja vista não ter sido revogado
o artigo 5º do Decreto
nº 572, de 12 de julho de 1890:
“Art. 5º Os decretos sobre interesse individual ou local,
as instrucções e avisos para a boa execução das leis e quaesquer actos de privativa attribuição do poder executivo, são exequiveis desde que delles tiverem conhecimento os interessados e as autoridades competentes por meio
do Diario Official, ou fórma authentica.” (Grifo Nosso)
Seguimos portanto, o entendimento de
Rubens Limongi França, esposado no seu Manual
de Direito Civil,
1º Volume:
“Têrmo inicial da eficácia dos regulamentos. A vacatio legis de quarenta e cinco dias só concerne
às leis propriamente ditas. Em se tratando de regulamentos, isto é, de diplomas promanados com o fito de desenvolver ou tornar viáveis as disposições legais, o têrmo inicial
supletivo é a data da publicação. Isto em virtude do que dispõe o art.5º do Decreto
nº 572, de 12 de julho de 1890, que nesta parte não se
considera revogado (v. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pág. 378, nota).”7 (1966, p. 44)
7 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de Direito Civil. 1º Volume. Editora Revista dos
Tribunais: São Paulo, 1966.
Quanto
aos documentos legais citados, embora as Regras Mínimas Padrão das Nações
Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Tóquio,
1990), as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não-Privativas de Liberdade Para Mulheres Infratoras (Bangkok, 2010), as Regras Mínimas das Nações Unidas para o
Tratamento dos Reclusos conhecidas como Regras de Nelson Mandela (2015)
e os Princípios
de Yogyakarta (2006, 2017) tenham natureza jurídica de soft law (e sem força sancionatória, portanto)
pela fundamentação exposta a seguir, tais recomendações internacionais
não estão em colisão com a ordem jurídica brasileira e com os tratados internacionais ratificados pelo Estado
Brasileiro citados na Resolução
Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024.
Porém,
tecnicamente, a adoção de soft law não estaria
nem adstrita à colmatação de normas
jurídicas, pois não há nelas sequer natureza
de costume internacional. Ainda que se alegue
que
são meramente recomendatórias, como visto as normas técnicas e as soft law também não possuem força coercitiva em caso de inobservância. O que de fato tem garantido a sua aplicabilidade é que elas
não confrontam a legislação
pátria e muitas das previsões dessas regras gerais se encontram em vigor no
ordenamento jurídico brasileiro por meio dos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos citados nas Considerações
da Resolução Conjunta, bem como
por direitos fundamentais previstos
na Constituição Federal de 1988.
Ademais, os Princípios de Yogyakarta, embora
seja na verdade
um instrumento interncional de “boas intenções”, não pode sustentar
a natureza de princípios jurídicos. Razão pela qual é recomendável projeto de lei nacional que confira não o status de princípio, haja vista a falta de embasamento deontológico, mas para que se positive
os “princípios” ali expressos como regras.
Atualmente, encontra-se já em tramitação o Projeto de Lei (PLS)
nº 134/2018 que propõe a criação
de um Estatuto da Diversidade
Sexual e de Gênero com base nos referidos
Princípios de Yogyakarta.
Ainda sobre a falta de natureza de princípios jurídicos aos chamados
Princípios de
Yogyakarta, não somente pela natureza de soft law,
mas pela inexistência realmente de embasamento deontológico que os caracterizem como
princípios, citamos a lição de Lenio Streck sobre pamprincipiologia:
“O Direito foi inundado por uma produção de standards valorativos, álibis teóricos
pelos quais se pode dizer qualquer coisa sobre interpretação da lei. Um
princípio – sem qualquer densidade deontológica – tem a “força” de derrotar o Direito posto,
sem que o intérprete lance mão da jusrisdicação constitucional. A esse
fenômeno dei o nome, desde 2004, depois de um debate com o
professor Luis Roberto Barroso sobre o princípio da afetividade, de pamprincipiologismo, havendo uma longa lista de “pamprincípios” em Verdade
e consenso (2014b; 2017) (...) O estado de arte do quadro principiológico se torna ainda mais complexo e problemático quando se
constata que se está diante de um conjunto de “princípios” dos quais é difícil
– para não dizer impossível – reconhecer o DNA em tempos de pós – positivismo
(não positivismo) e da busca da autonomia do Direito. Em muitos casos,
chega a ser
impossível identificar o status dos aludidos
“princípios”, isto é,
se está diante de princípio constitucional, infraconstitucional
ou de um enunciado no nível dos velhos “princípios gerais do Direito”8. (2020; pp. 253-255)
Com relação às Regras de Bangkok de 2010 sobre mulheres presas, embora o CNJ em sua doutrina
trate o referido
instrumento como marco legal internacional, não há coercitividade de suas regras, sendo meramente recomendatórias, e mais uma vez exortamos que haja Projeto de Lei, podendo ser de iniciativa do próprio Poder Executivo, com o conteúdo
das referidas regras:
“O principal marco normativo internacional a abordar essa
problemática são as chamadas Regras de Bangkok
− Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas
de liberdade para mulheres infratoras. Essas Regras propõem olhar diferenciado para as especificidades de gênero no encarceramento feminino, tanto no campo
da execução penal, como também na priorização de medidas não privativas de
liberdade, ou seja, que evitem a entrada de mulheres no sistema carcerário.”9
Da mesma forma, o CNJ assim dispôs também sobre as Regras Mínimas Padrão das
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8 STRECK, Lenio
Luiz. Dicionário de Hermenêutica. 2 ed. Casa do Direito:
Belo Horizonte, 2020.
9
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/cd8bc11ffdcbc397c32eecdc40afbb74.pdf
Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Tóquio,
1990)10 e as Regras Mínimas das Nações Unidas
para o Tratamento dos Reclusos
conhecidas como Regras
de Nelson Mandela (2015)11, que
erroneamente são chamados
de tratados internacionais.
Embora a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 também tenha natureza jurídica de soft law, diferentemente das demais citadas, sua aplicabilidade é indiscutível:
“A DUDH, norma de soft law que é, foi
completada pelos dois Pactos de 1966, sobre direitos civis e políticos e direitos econômicos e sociais e culturais, normas de hard law, e as três formam
a Carta Internacional dos Direitos Humanos”12.
(FRANCO FILHO, 2022)
Entrementes, os demais diplomas legais
citados na referida Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024, sejam leis esparsas nacionais ou
tratados internacionais são
aplicáveis em território brasileiro e possuem
natureza de norma jurídica
(elemento coercitivo). Porém, a Resolução Conjunta fundamenta suas considerações com base no artigo 5º, §§ 3º da Constituição Federal, o que também é uma falha, pois somente a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o
Tratado de Marraqueche e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância têm status de Emenda Constitucional.
Não houve na Resolução Conjunta
a citação da Convenção Interamericana contra o Racismo,
a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância de 2013 (Guatemala), embora
tenha status de emenda constitucional e a Lei nº 7.716/1989 seja atualmente aplicável no combate aos crimes
homotransfóbicos até que lei específica supra a omissão legislativa. Não cita
também a Convenção Internacional sôbre
a Eliminação de tôdas as Formas de Discriminação Racial
de 1965, que está em vigor no Brasil
desde a edição do Decreto
nº 65.810, de 08 de dezembro de 1969.
A Declaração da Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001) também possui natureza de soft law, porém, está em
vigor no Brasil desde 1969 vários tratados internacionais de Direitos Humanos que tratam
da questão racial, étnica e
religiosa, além da própria Constituição Federal de 1988 e aperfeiçoamento
![]() |
10 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/6ab7922434499259ffca0729122b2d38-2.pdf
11 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf
12 FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948. Tomo Direitos Humanos, Edição 1, Março de 2022
In: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/531/edicao-1/declaracao- universal-dos-direitos-humanos-de-1948
constante da Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, a célebre Lei Caó. Embora não citado na
Resolução Conjunta sob análise, a Convenção Interamericana contra o Racismo,
a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Guatemala/2013) possui status de Emenda Constitucional,
e está em vigor desde a publicação do Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022, como já referido
e não deve ser omitido em hipótese alguma pela equiparação desde 2019
dos crimes de homotransfobia ao de racismo.
Quanto aos demais instrumentos
legais internacionais citados na Resolução Conjunta vigoram no Brasil: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, em vigor com a publicação do Decreto
nº 592, de 06 de julho de 1992, o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em vigor com a publicação do Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992; a Convenção de Americana de Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica)
de 1969, em vigor com a publicação do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992 e o Protocolo de São Salvador de 1988, em vigor com a publicação
do Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999.
Adentrando na questão dos direitos da
personalidade e autodeterminação, conceituaremos o que vem a ser gênero e
pessoa transgêneras. Nesse sentido, corrobora-se que gênero é conceito
forjado a partir de uma evolução de papéis construídos no tempo conforme Glória
Rabay:
“Gênero é um conceito inter/multi/transdisciplinar, complexo e de difícil compreensão. É importante ressaltar que tanto é pouco estudado no campo educacional, quanto sua dimensão
educacional em geral é pouco estudada no campo das Ciências Sociais e
Humanas. O conceito que se disseminou na academia é o de que
gênero é uma construção histórica, cultural ou social, sem se explicitar que é
uma construção educacional (...) Entender a reprodução das relações de gênero
como processo um processo educacional, como aprendizagem de modelos, papéis,
valores e identidades sociais, é crucial para superar a desigualdade.13” (2016,
p. 53)
Portanto, a transgeneridade nada mais seria do que um direito
congênito de pessoas
![]() |
13 RABAY, Glória et alli. Direitos humanos das mulheres
e das pessoas LGBTQI.
Inclusão da perspectiva da diversidade sexual e de gênero na educação e na
formação docente. Editora UFPB: João Pessoa, 2016.
que nascem em determinado período
histórico condicionadas a padrões socialmente impostos
estranhas a sua subjetividade.
“O reconhecimento da transgeneridade é um passo importante para
assegurar o direito à autodeterminação de gênero, que deve ser um direito de todas as pessoas, garantindo-se inclusive o direito à
mudança de nome no registro
civil (CARVALHO, ANDRADE
E JUNQUEIRA, 2009) (...) As pessoas transexuais, que nem sempre
alteram cirurgicamente a anatomia sexual, reivindicam o reconhecimento social e jurídico de uma nova identidade de sexo e de gênero,
diferente daquela que lhe foi atribuída
no nascimento (BENTO,2008). Homns
transexuais são chamados
de transexuais masculinos (em inglês, FTM – female to male e mulheres transexuais são chamadas de transexuais
femininas (em inglês, MTF – “male to
female”)” RABAY: 2016 p. 33
No que tange
ao desrespeito à autodeterminação da pessoa presa quanto à sua identidade de gênero ou orientação sexual,
pode ser considerado como tortura. Tanto o art.
5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como art.1º da
Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanosou Degradantes (ratificado pelo Decreto
Legislativo nº 04, de 23 de maio de 1989 e promulgado pelo Decreto nº 40, de 15 de
fevereiro de 1991) não apresentam rol
taxativo das práticas
consideradas como tortura.
“Art. 5º “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou
tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”
“Art. 1º. Para os fins da
presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos,
físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma
pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter
cometido; de intimidar ou coagir
esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se
considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que
sejam inerentes a tais sanções ou
delas decorram.”
Ademais, o
art. 2º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes clarifica que o rol descrito no artigo primeiro se apresenta em “numerus apertus’.
“Art.2º. O presente Artigo não será interpretado de maneira
a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional
quecontenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.”
Infere-se que a Resolução Conjunta
CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024 visa coibir a práticas que configuram torturas, embora não trate expressamente dessa forma.
Cita-se justamente o disposto no artigo 7º do Pacto
Internacional sobreDireitos Civis
e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia
-Geral das Nações Unidas,em 16 de
dezembro de 1966 (ratificado pelo Decreto
Legislativo nº 226, de 12 de dezembro
de1991 e promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992),
que corrobora com a tese em questão:
“Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento
cruéis, desumanos ou degradantes.
No caso em
questão, não há possibilidade de não contemplar o direito à autodeterminação de pessoas trans* ou cis com orientação bissexual ou homossexual , haja
vista que segue-se o entendimento de Flávia Piovesan, uma vez que não é autorizada derrogação, ainda que temporária da
proibição de tortura.
“Apenas, excepcionalmente, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos admite a
derrogação temporária dos direitos que enuncia. À luz de seu art. 4º, a derrogação temporária dos direitos fica condicionada aos estritos limites impostos pela decretação
de estado de emergência, ficando proibida qualquer
medida discriminatória fundada
em raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social.
Ao mesmo tempo,
o Pacto estabelece direitos inderrogáveis, como o direito à
vida, a proibição da tortura e de qualquer forma de tratamento cruel,
desumano ou degradante, a proibição
da escravidão e da servidão,
o direito de não ser preso por inadimplemento contratual, o direito de
ser reconhecido como pessoa, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, dentre outros. Isto é, nada pode justificar a suspensão de tais direitos, seja ameaça ou estado de guerra, perigo
público, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência
pública. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos permite ainda limitações em relação a determinados direitos, quando necessárias à segurança nacional
ou àordem pública
(ex.: arts. 21 e 22)”
Pelo Princípio da Indivisibilidade dos
Direitos Humanos não se pode separar a proteção dos direitos da personalidade dos demais direitos proclamados por Tratados, Declarações ou ainda pelo costume internacional aplicados em matéria
de Direitos Humanos.
A interpretação sistemática utilizando-se Direito Civil,
Direitos Humanos e Direito
Constitucional não é despicienda, uma vez que também
na análise da aplicação de normas que
visem coibir violação de Direitos
Humanos, aplica-se
a norma mais favorável
à pessoa humana,conforme
citação de Flávia
Piovesan sobre entendimento do Ministro Celso de Mello:
“Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados
internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio
hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente
em atribuir primaziaà
norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a
dispensar-lhe a mais ampla proteção
jurídica. O Poder Judiciário,
nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável
(que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha
positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações
internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos
sociais, notadamente os
mais vulneráveis, a sistemas
institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana
(...).”
Os ergástulos são locais em que o indivíduo é incitado a perder sua identidade. No caso
em questão, o que busca
se preservar é a identidade e o direito
à autodeterminação, a partir do critério da autodeclaração, garantindo o direito congênito
de autodeterminação sexual
e de gênero, que pode ser violado pelo sistema prisional, como prática já sedimentada de se matar
moralmente e psicologicamente a pessoa em situação de pena privativa de liberdade,
despersonalizando-a, conforme Roberto Lyra:
“Individualização? Presos de personalidades e costumes opostos, sãos e doentes, finos e grossos,
cultos e ignorantes hão de identificar-se, dia e noite, em todos os momentos
inclusive na mesma cédula, na mesma mesa, no mesmo pátio, senão na mesma “cama”
– muitas vezes, o chão. A prisão não permite a individualização. A base do processo “regenerador” é suposta na cominação, na aplicação, na execução.
A prisão uniformiza, numera, desinvidualiza
, despersonaliza. Nem as classificações legais
são obedecidas”14. (2013,
p.66)
Por essa razão,
a Resolução Conjunta
CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de
2024 vem mais uma vez frisar o respeito aos Direitos da Personalidade das pessoas LGBTQIA+
14 LYRA Tavares, Roberto. Penitência de
um Penitenciarista.
Editora Líder,
Belo Horizonte,
2013.
presas, estendendo-se aos seus parentes, companheiros/as e cônjuges para que não tenham lesionados
a sua intimidade e honra por meio de revistas intimas vexatórias, prática corrente do sistema carcerário brasileiro. Ainda,
como primeiro Direito
da Personalidade por excelência, temos
o direito ao nome
social da pessoa presa. O Direito ao Nome é o primeiro Direito da Personalidade
(ou Direitos Privativos da Personalidade) reconhecido e positivado no século XIX, segundo lição de R. Limongi
França:
“Direitos da Personalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos
aspectos da própria
pessoa do sujeito,
bem assim suas emanações e prolongamentos (...) Parece-nos que o
primeiro diploma a tratar adrede
e especificamente de um Direito Privado da Personalidade foi a
Lei rumena, sôbre o Direito ao Nome, de 18 de março de 1895, da qual Minoresco
nos dá uma tradução francesa, em sua obra Le Nom des Personnes en Droit Comparé (Apêndice,
Paris, 1933).” (1966: pp. 321-325)15
Inclusive, segundo ainda Limingi França, os Direitos Privativos da Personalidade ou Direitos da Personalidade podem ser reconhecidos, independentemente de estarem positivados, por estarem justificados pelo Direito Natural,
vejamos:
“Adriano de Cupis, um dos mais autorizados estudiosos da matéria, assevera que os Direitos da Personalidade são,
tão-somente, aquêles concedidos pelo ordenamento (I Diritti Della Personalità, Milão, 1950). Noutras palavras, segundo
esta orientação, êstes direitos
são de natureza
positiva. Recoloca-se aqui a velha questão de se saber se
direito é só aquilo que está na Lei, ou se existem faculdades jurídicas, que,
não previstas embora no ordenamento, se tornam sancionáveis em virtude de sua
definição em outra forma de expressão de direito. De nossa parte, já tivemos
ocasião de demonstrar longamente que, a despeito de ser a Lei a forma
fundamental, outras existem
complementares, entre nós,
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15 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de Direito Civil.
1º Volume. Editora
Revista dos Tribunais: São Paulo,
1966.
reconhecidas pelo legislador, expressa ou implicitamente, no art. 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil. Assim, além de Direitos Privados da Personalidade
definidos em lei, outros há, reconhecidos pelo Costume
e pelo Direito Científico. É o caso do
Direito ao Nome, do Direito à Imagem, do Direito Moral do Escritor. O
fundamento próximo de sua sançãoé realmente a extratificação no Direito
Consuetudinário ou nas conclusões da Ciência
Jurídica. Mas o seu fundamento primeiro são as imposições da natureza
das coisas, noutras palavras, o Direito Natural.” (1966,
p. 324)16
Entendemos a partir disso, que os Direitos da Personalidade não se encontram em rol taxativo, determinado, o que não lhes tira a oponibilidade
erga omnes, por se tratar
de um direito subjetivo absoluto, conforme a inteligência e estudo de San Tiago Dantas:
“Dividem-se os direitos absolutos em dois grupos: direitos
da personalidade e direitos reais e os relativos, por sua vez, em direitos
pessoais, ou de crédito, e de família (...) Direitos Subjetivos
Absolutos. Diferença entre Direitos da Personalidade e Reais - Veja-se, por
exemplo, o direito à liberdade, à vida, à saúde, à integridade corpórea,
à própria imagem, ao nome. Todos estes são direitos da personalidade, porque o objeto deles, vida, liberdade,
honra, nome, etc., (...)”.17 (1977pp.
160- 161)
Outro aspecto
importante trazido por Dantas é a imprescritibilidade dos Direitos da
Personalidade:
“Os direitos da personalidade são mui
naturalmente imprescritíveis,
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16 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de Direito Civil.
1º Volume. Editora
Revista dos Tribunais: São Paulo,
1966.
17
DANTAS, San Tiago. Programa
de Direito Civil.
Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro,
1977.
porque sendo indisponíveis, não são se poderia admitir que a lesão
do direito a respeito deles convalescesse. Jamais se poderia admitir que a lesão de um direito da personalidade
convalescesse pelo decurso do tempo, porque isso importaria na disponibilidade desse direito em favor de que o tivesse ofendendo”18. (1977, p. 403)
Infere-se que a autodeclaração, que
corresponde ao direito congênito da transgeneridade e autodeterminação de
gênero é extensão dos Direitos da Personalidade, sendo oponível erga omnes e imprescritível, de natureza subjetiva absoluta, haja vista se tratar de um rol em numerus
apertus, razão pela qual, apenas a
autodeclaração/autodeterminação seria suficiente, reservados os casos de crime de falsidade ideológica em que a performance de gênero da pessoa declarante não corresponde
a sua autodeclaração.
3.
CONCLUSÃO
Ex
Positis, infere-se que a Resolução Conjunta
CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024 está em conformidade com a Constituição Federal de 1988, com legislação esparsa
pátria (a exemplo da Lei Caó e outras que devem ser melhor esmiuçadas pelas comissões de Direito
Penal e Criminologia) e com os tratados internacionais de Direitos
Humanos em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, bem como com a legislação
civil no que tange aos direitos da personalidade, devendo ser considerada adequada em consonância com o princípio dadignidade da
pessoa humana e atendendo ao direito congênito à transgeneridade e autodeterminação.
Por outro lado, por se tratar de norma técnica sem o elemento coercitivo próprio das normas jurídicas, orienta-se que
o Poder Executivo
proponha projeto de lei com o teor da referida
Resolução, haja vista ser discutível o regramento sobre audiência de custódia,
a aplicabilidade de regras previstas em soft law, bem como a própria natureza juridíca das
resoluções quanto à possibilidade de norma substitutiva da lei
em stricto sensu. A garantia da
aplicação da referida Resolução se justifica por outros instrumentos
legais e não por ela em si, conforme exposto.
Quanto à questão doutrinária, o presente parecer coloca como tese a
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18 DANTAS, San Tiago. Programa
de Direito Civil.
Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro,
1977.
transgeneridade como direito congênito e assim como o
direito à autodeterminação de gênero, o
de orientação sexual,
sendo uma das extensões dos Direitos da Personalidade, de rol aberto,
como visto. Infere-se, portanto, o direito congênito à autodeteminação
sexual e à transgeneridade um direito
absoluto, oponível erga omnis.
É o parecer, salvo melhor juízo.
João Pessoa, 05 de maio de 2024
Laura Taddei
Alves Pereira Pinto Berquó Membro Efetivo – OAB/PB 11.151
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