sábado, 5 de julho de 2025

PARECER IAB: RESOLUÇÃO CONJUNTA CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, DE 26 DE MARÇO DE 2024.

 

 


 

 

 

Indicação 23/2024

Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2, de 26 de março de 2024.

Cuida de Resolução Conjunta do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e do Conselho Nacional LGBTQIA+ (Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais e outras) sobre parâmetros para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade no Brasil Indicação proposta pela Confreira Dra Marcia Dinis

 

 

RESOLUÇÃO CONJUNTA CNPCP/CNLGBTQIA+ Nº 2 . INDICAÇÃO ORIGINÁRIA COMISSÃO DE CRIMINOLOGIA DO IAB. NORMA TÉCNICA. PESSOAS                                    LGBTQIAP+                        PRESAS. AUTODETERMINAÇÃO             E              DIREITO CONGÊNITO DE PESSOAS TRANSGÊNERAS. DIREITOS HUMANOS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. TORTURA.

 

 

 

1.        RELATÓRIO

 

A Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros foi provocada para emissão de parecer sobre a Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2, de 26 de março de 2024, conforme indicação originária da Comissão de Criminologia, tendo como confreira indicante a Dra Marcia Dinis.


 

Cuida ainda a Indicação nº 23/2024 de análise legal da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024, que “estabelece parâmetros para o acolhimento de pessoas LGBTQIA+ em privação de liberdade no Brasil”

Segundo a douta indicante, Dra Marcia Diniz, a referida resolução trata de parâmetros para acolhimento de pessoas LGBTQIA+ em situação de privação de liberdade, bem como de regras referentes à condução da audiência de custódia, bem como a criação e implementação de estabelecimentos penais específicos, alas e celas de convívio LGBTQIA+.

Referentemente à custódia, além da determinação da criação e/ou implementação de estabelecimentos penais específicos, alas e celas de convívio LGBTQIA+ nas unidades penitenciárias, alude “que deverá ser regido pela identidade de gênero da pessoa custodiada e, em menor grau, por sua orientação sexual,” com base na autodeclaração” sem que jamais se desprivilegie quaisquer direitos relacionados à execução penal”.

Informa ainda a Indicante que a Resolução em estudo prevê questões relacionadas aos direitos da personalidade como o direito ao nome social no sistema penitenciário e a integridade da intimidade com relação às revistas íntimas vexatórias de visitantes e das próprias pessoas presas.

Informa também que a referida Resolução “dispõe também sobre acesso a itens e direito à saúde, educação, trabalho, assistência social e religiosa, bem como auxílio-reclusão, além de conter dispositivos voltados à formação continuada dos servidores públicos e à promoção da cidadania”.

Por esses pontos elencados, a Dra Márcia Diniz acredita que o tema é de extrema relevância e que a Casa de Montezuma por meio de suas comissões (Direitos Humanos, Direito Penal e de Criminologia) não deve se abster da análise de relevante documento, sendo esta a razão justificadora de sua indicação.

É o Relatório, passo a opinar.

 

 

2.        FUNDAMENTAÇÃO

 

 

 

Com fincas nos artigo 3º, II do Estatuto do Instituto dos Advogados Brasileiros, artigo 69 do Regimento Interno da Casa de Montezuma, bem como da Resolução 03/2018, passo a discorrer sobre a fundamentação jurídica que embasará a conclusão do presente parecer.


A fundamentação será de natureza complementar ao expresso na resolução em

estudo, adstrindo-se somente à matéria de Direitos Humanos, deixando a cargo das Comissões de Direito Penal e de Criminologia do Instituto dos Advogados Brasileiros a análise da legislação penal e penitenciária.

Mesmo assim, às legislações apresentadas como fundamentação na Resolução Conjunta, a necessidade de se fazer considerações e críticas em alguns aspectos, bem como crítica à via eleita para tratar de alguns procedimentos, devendo se recomendar ao final envio de Projeto de Lei de iniciativa do Poder Executivo, para que lei ordinária confira força coercitiva às pretensões da Resolução.

Ressalte-se que os direitos sociais e da personalidade elencados na Resolução em tela já se encontram contemplados no ordenamento jurídico brasileiro, mas que para isso há a necessidade de uma interpretação sistemática do Direito em vigor.

Portanto, considerando o próprio ordenamento nacional que embasa perfeitamente o direito da população carcerária LGBTQIA+, bem como os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados, foram citados pela Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 02/2024:

 

a)    Art. 1º, III, Art.3ª, I e IV, Art. 5º, incisos III, XLI, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX, LXXVIII, §§

2º e 3º, da Constituição Federal de 1988;da Constituição Federal de 1988;1

 


1 Art. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a)  privação ou restrição da liberdade;

b)   perda de bens;

c)   multa;

d)   prestação social alternativa;

e)   suspensão ou interdição de direitos; XLVII - não haverá penas:

a)  de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b)   de caráter perpétuo;

c)   de trabalhos forçados;

d)   de banimento;

e)   cruéis;


b)    Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948);

c)    Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966);

d)   Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966);

e)    Protocolo de São Salvador (1988);

f)     Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001);

g)    Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Bangkok, 2010),

h)    Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos conhecidas como Regras de Nelson Mandela (2015)

i)    Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade (Tóquio, 1990);

j)   Princípios de Yogyakarta e sua reedição sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero (Yogyakarta, 2006; 2017);

k)   Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

 

Também para fins de esclarecimento da terminologia utilizada no parecer, será utilizada a palavra pessoa trans* (com asterisco) ou Transgêneras, como termo “guarda chuva” para pessoas não-binárias, transmaculinas, mulheres trans e travestis, conforme conceituação contida na Cartilha O Ministério Público e os Direitos LGBT2 do Ministério Público Federal conjuntamente com o Ministério Público do Estado do Ceará:

 

“Transgêneras é a expressão “guarda-chuva” utilizada para designar as pessoas que possuem uma identidade de gênero diferente daquela correspondente ao sexo biológico.” (2017, p.14)


XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

 

2 file:///C:/Users/Windows/Downloads/Cartilha_MP_direitos_LGBT.pdf


 

A norma sob análise, isto é, a resolução, possui natureza de ‘norma técnica’, razão pela qual não pode ser considerada uma norma jurídica, por faltar-lhe a coercitividade necessária, consoante ensimanento de San Tiago Dantas:

 

“Normas Técnicas - Numerosas são as normas técnicas, os conselhos, as recomendações que existem nos diplomas legislativos, isto é, muito da feição do espírito moderno. Tem-se logo de compreender que todos esses dispositivos não pertencem à categoria das normas jurídicas no Código Civil, no Código Comercial, nem no Código Processual. Nas leis sobre o direito privado não são comandos as normas técnicas, embora existam.

Onde elas são abundantíssimas, é no campo do direito administrativo. se encontram a cada passo as leis administrativas recheadas de conselhos, recomendações princípios admonitórios, que o legislador ali colocou para orientar os seus funcionários ou os próprios súditos do Estado, mas que não são jurídicas, não são comandos munidos de sanção”3. (1977, p.72)

 

Por essa razão, entende ser necessário que lei específica trate dos pontos elencados sobre audiência de custódia, alterando o Código de Processo Penal, a exemplo da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a célebre Lei do Pacote Anticrime, embora existisse previsão no artigo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e na Resolução 213, de 15 de dezembro de 2015 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ4

Segundo o art. 2º da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024, o magistrado na audiência de custódia ou em qualquer fase do procedimento penal deverá com base no critério exclusivo da autodeclaração da pessoa presa informar-lhe os direitos que lhe assistem:

 

“Art. O reconhecimento da pessoa como parte da população

 


3 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro, 1977.

4 Em https://www.jusbrasil.com.br/artigos/audiencia-de-custodia-lei-n-13964-de-24-de-dezembro-de- 2019/821628258


LGBTQIA+ será feito exclusivamente por meio de autodeclaração,

que deverá ser colhida pelo(a) magistrado(a) em audiência, em qualquer fase do procedimento penal, incluindo a audiência de custódia, até a extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena, garantidos os direitos à privacidade e à integridade da pessoa declarante. Nos casos em que o(a) magistrado(a), por qualquer meio, for informado(a) de que a pessoa em juízo pertence à população LGBTQIA+, deverá cientificá- la acerca da possibilidade da autodeclaração e informá-la, em linguagem acessível, os direitos e garantias que lhe assistem.

Parágrafo único. A informação autodeclarada poderá ser armazenada em caráter restrito, ou mesmo ser mantida sigilosa.”

 

um grande debate sobre a coercitividade dessas resoluções, sejam elas oriundas de Conselhos de políticas públicas, sejam elas oriundas do próprio CNJ e/ou CNMP, embora haja previsão constitucional a respeito desses dois últimos5, isto porque é questionável o poder regulamentar de tais conselhos, conforme entedimentos de Streck, Sarlet e Clève:

 

“A constitucionalidade lato sensu de ambos os Conselhos já foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal. A discussão que se põe agora diz respeito aos limites do poder regulamentar dos Conselhos, o que implica necessariamente discutir a natureza


5 CF/88. Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;  Art. 130-A. O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo: § 2º Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo lhe: I zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos Tribunais de Contas;


jurídica de suas resoluções, isto é, o questionamento acerca do

poder de emitir resoluções com força de lei. (...).Tendo a mesma ratio, as diretrizes que norteiam ambos os Conselhos são idênticas, registrando-se apenas a especificidade constante no Conselho Nacional de Justiça, que estabelece a competência de zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, enquanto no caso do Conselho Nacional do Ministério Público essa questão não está explicitamente estabelecida. Essa sutil diferença - cujas conseqüências, poderão ter reflexos em outros campos - não significa que haja tratamento diferenciado do constituinte derivado no que diz respeito à legitimidade de "legislar" por parte dos dois Conselhos, notadamente quando em causa restrições a direitos e garantias constitucionais, inclusive e notadamente - e isto sempre foi muito caro para ambas as Instituições (Poder Judiciário e Ministério Público) - as garantias funcionais e institucionais. Daí a necessária discussão acerca dos limites para a expedição de "atos regulamentares" (esta é a expressão constante na Constituição para os dois Conselhos). Com efeito, parece um equívoco admitir que os Conselhos possam, mediante a expedição de atos regulamentares (na especificidade, resoluções), substituir-se à vontade geral (Poder Legislativo) e tampouco ao próprio Poder Judiciário, com a expedição, por exemplo, de "medidas cautelares/liminares". Dito de outro modo, a leitura do texto constitucional não azo a tese de que o constituinte derivado tenha "delegado" aos referidos Conselhos o poder de romper com o princípio da reserva de lei e de reserva de jurisdição”. (STRECK et alli , 2006)6

 

Porém, a Constituição Federal de 1988 e Tratados Internacionais citados nos

 


6      STRECK,     Lênio,     SARLET,     Ingo     Wolfgang,     CLÊVE,     Clèmerson     Merlin.     In: https://www.migalhas.com.br/depeso/20381/os-limites-constitucionais-das-resolucoes-do- conselho-nacional-de-justica--cnj--e-conselho-nacional-do-ministerio-publico--cnmp


Considerandos da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2, de 26 de março de 2024, bem

como outros não citados, são suficientes para garantirem os direitos humanos da pessoa LGBTQIA+ presa, direitos da personalidade e demais direitos citados como assistência religiosa, médica e de seguridade social, além de coibirem tortura pela negação da autodeterminação de pessoas transgêneras (e autodeclaras cis e homossexuais/bissexuais) para fins de proteção da população LGBTQIA+ encarcerada, sendo em princípio tais normas jurídicas suficientes para prevenção da homotrasnfobia no sistema penitenciário.

O segundo ponto é que a referida Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2, de 26 de março de 2024, se encontra em vigor desde a data de sua publicação, haja vista não ter sido revogado o artigo do Decreto 572, de 12 de julho de 1890:

 

“Art. 5º Os decretos sobre interesse individual ou local, as instrucções e avisos para a boa execução das leis e quaesquer actos de privativa attribuição do poder executivo, são exequiveis desde que delles tiverem conhecimento os interessados e as autoridades competentes por meio do Diario Official, ou fórma authentica.” (Grifo Nosso)

 

Seguimos portanto, o entendimento de Rubens Limongi França, esposado no seu Manual de Direito Civil, Volume:

 

“Têrmo inicial da eficácia dos regulamentos. A vacatio legis de quarenta e cinco dias concerne às leis propriamente ditas. Em se tratando de regulamentos, isto é, de diplomas promanados com o fito de desenvolver ou tornar viáveis as disposições legais, o têrmo inicial supletivo é a data da publicação. Isto em virtude do que dispõe o art.5º do Decreto 572, de 12 de julho de 1890, que nesta parte não se considera revogado (v. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pág. 378, nota).”7 (1966, p. 44)

 


7 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de Direito Civil. 1º Volume. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 1966.


Quanto aos documentos legais citados, embora as Regras Mínimas Padrão das Nações

Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Tóquio, 1990), as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não-Privativas de Liberdade Para Mulheres Infratoras (Bangkok, 2010), as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos conhecidas como Regras de Nelson Mandela (2015) e os Princípios de Yogyakarta (2006, 2017) tenham natureza jurídica de soft law (e sem força sancionatória, portanto) pela fundamentação exposta a seguir, tais recomendações internacionais não estão em colisão com a ordem jurídica brasileira e com os tratados internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro citados na Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024.

Porém, tecnicamente, a adoção de soft law não estaria nem adstrita à colmatação de normas jurídicas, pois não nelas sequer natureza de costume internacional. Ainda que se alegue que são meramente recomendatórias, como visto as normas técnicas e as soft law também não possuem força coercitiva em caso de inobservância. O que de fato tem garantido a sua aplicabilidade é que elas não confrontam a legislação pátria e muitas das previsões dessas regras gerais se encontram em vigor no ordenamento jurídico brasileiro por meio dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos citados nas Considerações da Resolução Conjunta, bem como por direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.

Ademais, os Princípios de Yogyakarta, embora seja na verdade um instrumento interncional de “boas intenções”, não pode sustentar a natureza de princípios jurídicos. Razão pela qual é recomendável projeto de lei nacional que confira não o status de princípio, haja vista a falta de embasamento deontológico, mas para que se positive os “princípios” ali expressos como regras. Atualmente, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei (PLS) 134/2018 que propõe a criação de um Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero com base nos referidos Princípios de Yogyakarta. Ainda sobre a falta de natureza de princípios jurídicos aos chamados Princípios de

Yogyakarta, não somente pela natureza de soft law, mas pela inexistência realmente de embasamento deontológico que os caracterizem como princípios, citamos a lição de Lenio Streck sobre pamprincipiologia:

 

“O Direito foi inundado por uma produção de standards valorativos, álibis teóricos pelos quais se pode dizer qualquer coisa sobre interpretação da lei. Um princípio – sem qualquer densidade deontológica tem a “força” de derrotar o Direito posto, sem que o intérprete lance mão da jusrisdicação constitucional. A esse


fenômeno dei o nome, desde 2004, depois de um debate com o

professor Luis Roberto Barroso sobre o princípio da afetividade, de pamprincipiologismo, havendo uma longa lista de “pamprincípios” em Verdade e consenso (2014b; 2017) (...) O estado de arte do quadro principiológico se torna ainda mais complexo e problemático quando se constata que se está diante de um conjunto de “princípios” dos quais é difícil – para não dizer impossível – reconhecer o DNA em tempos de pós – positivismo (não positivismo) e da busca da autonomia do Direito. Em muitos casos, chega a ser impossível identificar o status dos aludidos “princípios”, isto é, se está diante de princípio constitucional, infraconstitucional ou de um enunciado no nível dos velhos “princípios gerais do Direito”8. (2020; pp. 253-255)

 

Com relação às Regras de Bangkok de 2010 sobre mulheres presas, embora o CNJ em sua doutrina trate o referido instrumento como marco legal internacional, não coercitividade de suas regras, sendo meramente recomendatórias, e mais uma vez exortamos que haja Projeto de Lei, podendo ser de iniciativa do próprio Poder Executivo, com o conteúdo das referidas regras:

 

“O principal marco normativo internacional a abordar essa problemática são as chamadas Regras de Bangkok − Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Essas Regras propõem olhar diferenciado para as especificidades de gênero no encarceramento feminino, tanto no campo da execução penal, como também na priorização de medidas não privativas de liberdade, ou seja, que evitem a entrada de mulheres no sistema carcerário.”9

 

Da mesma forma, o CNJ assim dispôs também sobre as Regras Mínimas Padrão das

 

 


8 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. 2 ed. Casa do Direito: Belo Horizonte, 2020.

9 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/cd8bc11ffdcbc397c32eecdc40afbb74.pdf


Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Tóquio, 1990)10 e as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos conhecidas como Regras de Nelson Mandela (2015)11, que erroneamente são chamados de tratados internacionais.

Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 também tenha natureza jurídica de soft law, diferentemente das demais citadas, sua aplicabilidade é indiscutível:

 

A DUDH, norma de soft law que é, foi completada pelos dois Pactos de 1966, sobre direitos civis e políticos e direitos econômicos e sociais e culturais, normas de hard law, e as três formam a Carta Internacional dos Direitos Humanos”12. (FRANCO FILHO, 2022)

 

Entrementes, os demais diplomas legais citados na referida Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024, sejam leis esparsas nacionais ou tratados internacionais são aplicáveis em território brasileiro e possuem natureza de norma jurídica (elemento coercitivo). Porém, a Resolução Conjunta fundamenta suas considerações com base no artigo 5º, §§ 3º da Constituição Federal, o que também é uma falha, pois somente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Tratado de Marraqueche e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância têm status de Emenda Constitucional.

Não houve na Resolução Conjunta a citação da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância de 2013 (Guatemala), embora tenha status de emenda constitucional e a Lei 7.716/1989 seja atualmente aplicável no combate aos crimes homotransfóbicos até que lei específica supra a omissão legislativa. Não cita também a Convenção Internacional sôbre a Eliminação de tôdas as Formas de Discriminação Racial de 1965, que está em vigor no Brasil desde a edição do Decreto 65.810, de 08 de dezembro de 1969.

A Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001) também possui natureza de soft law, porém, está em vigor no Brasil desde 1969 vários tratados internacionais de Direitos Humanos que tratam da questão racial, étnica e religiosa, além da própria Constituição Federal de 1988 e aperfeiçoamento

 


10 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/6ab7922434499259ffca0729122b2d38-2.pdf

11 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a9426e51735a4d0d8501f06a4ba8b4de.pdf

12 FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Tomo Direitos Humanos, Edição 1, Março de 2022 In: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/531/edicao-1/declaracao- universal-dos-direitos-humanos-de-1948


constante da Lei 7.716, de 05 de janeiro de 1989, a célebre Lei Caó. Embora não citado na

Resolução Conjunta sob análise, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Guatemala/2013) possui status de Emenda Constitucional, e está em vigor desde a publicação do Decreto 10.932, de 10 de janeiro de 2022, como referido e não deve ser omitido em hipótese alguma pela equiparação desde 2019 dos crimes de homotransfobia ao de racismo.

Quanto aos demais instrumentos legais internacionais citados na Resolução Conjunta vigoram no Brasil: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, em vigor com a publicação do Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em vigor com a publicação do Decreto 591, de 06 de julho de 1992; a Convenção de Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, em vigor com a publicação do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992 e o Protocolo de São Salvador de 1988, em vigor com a publicação do Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999.

Adentrando na questão dos direitos da personalidade e autodeterminação, conceituaremos o que vem a ser gênero e pessoa transgêneras. Nesse sentido, corrobora-se que gênero é conceito forjado a partir de uma evolução de papéis construídos no tempo conforme Glória Rabay:

 

“Gênero é um conceito inter/multi/transdisciplinar, complexo e de difícil compreensão. É importante ressaltar que tanto é pouco estudado no campo educacional, quanto sua dimensão educacional em geral é pouco estudada no campo das Ciências Sociais e Humanas. O conceito que se disseminou na academia é o de que gênero é uma construção histórica, cultural ou social, sem se explicitar que é uma construção educacional (...) Entender a reprodução das relações de gênero como processo um processo educacional, como aprendizagem de modelos, papéis, valores e identidades sociais, é crucial para superar a desigualdade.13 (2016, p. 53)

 

Portanto, a transgeneridade nada mais seria do que um direito congênito de pessoas

 


13 RABAY, Glória et alli. Direitos humanos das mulheres e das pessoas LGBTQI. Inclusão da perspectiva da diversidade sexual e de gênero na educação e na formação docente. Editora UFPB: João Pessoa, 2016.


que nascem em determinado período histórico condicionadas a padrões socialmente impostos

estranhas a sua subjetividade.

 

“O reconhecimento da transgeneridade é um passo importante para

 

 

 

assegurar o direito à autodeterminação de gênero, que deve ser um direito de todas as pessoas, garantindo-se inclusive o direito à mudança de nome no registro civil (CARVALHO, ANDRADE E JUNQUEIRA, 2009) (...) As pessoas transexuais, que nem sempre alteram cirurgicamente a anatomia sexual, reivindicam o reconhecimento social e jurídico de uma nova identidade de sexo e de gênero, diferente daquela que lhe foi atribuída no nascimento (BENTO,2008). Homns transexuais são chamados de transexuais masculinos (em inglês, FTM – female to male e mulheres transexuais são chamadas de transexuais femininas (em inglês, MTF – “male to female”)” RABAY: 2016 p. 33

 

No que tange ao desrespeito à autodeterminação da pessoa presa quanto à sua identidade de gênero ou orientação sexual, pode ser considerado como tortura. Tanto o art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como art.1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanosou Degradantes (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 04, de 23 de maio de 1989 e promulgado pelo Decreto 40, de 15 de fevereiro de 1991) não apresentam rol taxativo das práticas consideradas como tortura.

 

“Art. 5º “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”

 

“Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter


 

 

cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”

 

Ademais, o art. 2º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes clarifica que o rol descrito no artigo primeiro se apresenta em “numerus apertus’.

 

“Art.2º. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional quecontenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.”

 

Infere-se que a Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nº 2, de 26 de março de 2024 visa coibir a práticas que configuram torturas, embora não trate expressamente dessa forma. Cita-se justamente o disposto no artigo do Pacto Internacional sobreDireitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia -Geral das Nações Unidas,em 16 de dezembro de 1966 (ratificado pelo Decreto Legislativo 226, de 12 de dezembro de1991 e promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992), que corrobora com a tese em questão:

 

“Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes.

 

No caso em questão, não há possibilidade de não contemplar o direito à autodeterminação de pessoas trans* ou cis com orientação bissexual ou homossexual , haja vista que segue-se o entendimento de Flávia Piovesan, uma vez que não é autorizada derrogação, ainda que temporária da


proibição de tortura.

 

“Apenas, excepcionalmente, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos admite a derrogação temporária dos direitos que enuncia. À luz de seu art. 4º, a derrogação temporária dos direitos fica condicionada aos estritos limites impostos pela decretação de estado de emergência, ficando proibida qualquer medida discriminatória fundada em raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. Ao mesmo tempo, o Pacto estabelece direitos inderrogáveis, como o direito à vida, a proibição da tortura e de qualquer forma de tratamento cruel, desumano ou degradante, a proibição da escravidão e da servidão, o direito de não ser preso por inadimplemento contratual, o direito de ser reconhecido como pessoa, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, dentre outros. Isto é, nada pode justificar a suspensão de tais direitos, seja ameaça ou estado de guerra, perigo público, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos permite ainda limitações em relação a determinados direitos, quando necessárias à segurança nacional ou àordem pública (ex.: arts. 21 e 22)”

 

Pelo Princípio da Indivisibilidade dos Direitos Humanos não se pode separar a proteção dos direitos da personalidade dos demais direitos proclamados por Tratados, Declarações ou ainda pelo costume internacional aplicados em matéria de Direitos Humanos.

A interpretação sistemática utilizando-se Direito Civil, Direitos Humanos e Direito Constitucional não é despicienda, uma vez que também na análise da aplicação de normas que visem coibir violação de Direitos Humanos, aplica-se a norma mais favorável à pessoa humana,conforme citação de Flávia Piovesan sobre entendimento do Ministro Celso de Mello:

 

“Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primaziaà


norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a

dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana (...).”

 

Os ergástulos são locais em que o indivíduo é incitado a perder sua identidade. No caso em questão, o que busca se preservar é a identidade e o direito à autodeterminação, a partir do critério da autodeclaração, garantindo o direito congênito de autodeterminação sexual e de gênero, que pode ser violado pelo sistema prisional, como prática sedimentada de se matar moralmente e psicologicamente a pessoa em situação de pena privativa de liberdade, despersonalizando-a, conforme Roberto Lyra:

 

“Individualização? Presos de personalidades e costumes opostos, sãos e doentes, finos e grossos, cultos e ignorantes hão de identificar-se, dia e noite, em todos os momentos inclusive na mesma cédula, na mesma mesa, no mesmo pátio, senão na mesma “cama” – muitas vezes, o chão. A prisão não permite a individualização. A base do processo “regenerador” é suposta na cominação, na aplicação, na execução. A prisão uniformiza, numera, desinvidualiza , despersonaliza. Nem as classificações legais são obedecidas”14. (2013, p.66)

 

Por essa razão, a Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2, de 26 de março de 2024 vem mais uma vez frisar o respeito aos Direitos da Personalidade das pessoas LGBTQIA+

 


14 LYRA Tavares, Roberto. Penitência de um Penitenciarista. Editora Líder, Belo Horizonte, 2013.


presas, estendendo-se aos seus parentes, companheiros/as e cônjuges para que não tenham lesionados

a sua intimidade e honra por meio de revistas intimas vexatórias, prática corrente do sistema carcerário brasileiro. Ainda, como primeiro Direito da Personalidade por excelência, temos o direito ao nome social da pessoa presa. O Direito ao Nome é o primeiro Direito da Personalidade (ou Direitos Privativos da Personalidade) reconhecido e positivado no século XIX, segundo lição de R. Limongi França:

 

“Direitos da Personalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim suas emanações e prolongamentos (...) Parece-nos que o primeiro diploma a tratar adrede e especificamente de um Direito Privado da Personalidade foi a Lei rumena, sôbre o Direito ao Nome, de 18 de março de 1895, da qual Minoresco nos dá uma tradução francesa, em sua obra Le Nom des Personnes en Droit Comparé (Apêndice, Paris, 1933).” (1966: pp. 321-325)15

 

Inclusive, segundo ainda Limingi França, os Direitos Privativos da Personalidade ou Direitos da Personalidade podem ser reconhecidos, independentemente de estarem positivados, por estarem justificados pelo Direito Natural, vejamos:

 

“Adriano de Cupis, um dos mais autorizados estudiosos da matéria, assevera que os Direitos da Personalidade são, tão-somente, aquêles concedidos pelo ordenamento (I Diritti Della Personalità, Milão, 1950). Noutras palavras, segundo esta orientação, êstes direitos são de natureza positiva. Recoloca-se aqui a velha questão de se saber se direito é só aquilo que está na Lei, ou se existem faculdades jurídicas, que, não previstas embora no ordenamento, se tornam sancionáveis em virtude de sua definição em outra forma de expressão de direito. De nossa parte, já tivemos ocasião de demonstrar longamente que, a despeito de ser a Lei a forma fundamental, outras existem complementares, entre nós,


15 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de Direito Civil. Volume. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 1966.


 

 

reconhecidas pelo legislador, expressa ou implicitamente, no art. da Lei de Introdução ao Código Civil. Assim, além de Direitos Privados da Personalidade definidos em lei, outros há, reconhecidos pelo Costume e pelo Direito Científico. É o caso do Direito ao Nome, do Direito à Imagem, do Direito Moral do Escritor. O fundamento próximo de sua sançãoé realmente a extratificação no Direito Consuetudinário ou nas conclusões da Ciência Jurídica. Mas o seu fundamento primeiro são as imposições da natureza das coisas, noutras palavras, o Direito Natural.” (1966, p. 324)16

 

Entendemos a partir disso, que os Direitos da Personalidade não se encontram em rol taxativo, determinado, o que não lhes tira a oponibilidade erga omnes, por se tratar de um direito subjetivo absoluto, conforme a inteligência e estudo de San Tiago Dantas:

 

“Dividem-se os direitos absolutos em dois grupos: direitos da personalidade e direitos reais e os relativos, por sua vez, em direitos pessoais, ou de crédito, e de família (...) Direitos Subjetivos Absolutos. Diferença entre Direitos da Personalidade e Reais - Veja-se, por exemplo, o direito à liberdade, à vida, à saúde, à integridade corpórea, à própria imagem, ao nome. Todos estes são direitos da personalidade, porque o objeto deles, vida, liberdade, honra, nome, etc., (...)”.17 (1977pp. 160- 161)

 

Outro aspecto importante trazido por Dantas é a imprescritibilidade dos Direitos da

Personalidade:

 

“Os direitos da personalidade são mui naturalmente imprescritíveis,


16 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de Direito Civil. Volume. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 1966.

 

17 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro, 1977.


porque sendo indisponíveis, não são se poderia admitir que a lesão

do direito a respeito deles convalescesse. Jamais se poderia admitir que a lesão de um direito da personalidade convalescesse pelo decurso do tempo, porque isso importaria na disponibilidade desse direito em favor de que o tivesse ofendendo”18. (1977, p. 403)

 

Infere-se que a autodeclaração, que corresponde ao direito congênito da transgeneridade e autodeterminação de gênero é extensão dos Direitos da Personalidade, sendo oponível erga omnes e imprescritível, de natureza subjetiva absoluta, haja vista se tratar de um rol em numerus apertus, razão pela qual, apenas a autodeclaração/autodeterminação seria suficiente, reservados os casos de crime de falsidade ideológica em que a performance de gênero da pessoa declarante não corresponde a sua autodeclaração.

 

3.        CONCLUSÃO

 

 

Ex Positis, infere-se que a Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ 2, de 26 de março de 2024 está em conformidade com a Constituição Federal de 1988, com legislação esparsa pátria (a exemplo da Lei Caó e outras que devem ser melhor esmiuçadas pelas comissões de Direito Penal e Criminologia) e com os tratados internacionais de Direitos Humanos em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, bem como com a legislação civil no que tange aos direitos da personalidade, devendo ser considerada adequada em consonância com o princípio dadignidade da pessoa humana e atendendo ao direito congênito à transgeneridade e autodeterminação.

Por outro lado, por se tratar de norma técnica sem o elemento coercitivo próprio das normas jurídicas, orienta-se que o Poder Executivo proponha projeto de lei com o teor da referida Resolução, haja vista ser discutível o regramento sobre audiência de custódia, a aplicabilidade de regras previstas em soft law, bem como a própria natureza juridíca das resoluções quanto à possibilidade de norma substitutiva da lei em stricto sensu. A garantia da aplicação da referida Resolução se justifica por outros instrumentos legais e não por ela em si, conforme exposto.

Quanto    à    questão   doutrinária,   o    presente    parecer   coloca   como    tese   a

 


18 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro, 1977.


transgeneridade como direito congênito e assim como o direito à autodeterminação de gênero, o

de orientação sexual, sendo uma das extensões dos Direitos da Personalidade, de rol aberto, como visto. Infere-se, portanto, o direito congênito à autodeteminação sexual e à transgeneridade um direito absoluto, oponível erga omnis.

É o parecer, salvo melhor juízo.

João Pessoa, 05 de maio de 2024

 

Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó Membro Efetivo – OAB/PB 11.151

Nenhum comentário:

Postar um comentário