terça-feira, 16 de setembro de 2025

ENRICO FERRI E O DELITO PASSIONAL: BEM ANTES DO STF E DO PACOTE ANTI-FEMINICÍDIO






ENRICO FERRI E O DELITO PASSIONAL: BEM ANTES DO STF E DO PACOTE ANTI-FEMINICÍDIO


Bem antes do STF rejeitar definitivamente a tese de legítima defesa da honra como uma das justificativas para prática de feminicídio e aceita como "excludente de ilicitude" supralegal, bem anres do Pacote Anti-feminicídio de 2024, já existia ENRICO FERRI. Mesmo abolida a "legítima defesa da honra de nosso ordenamento desde 1830,  manteve-se como prática essa cultura feminicida ratificada pelos jurados do fato em nossos Tribunais. Na obra 'O Delicto Passional na Civilização Contemporânea' , o ensaio escrito na primeira década do século XX pelo  criminalista positivista italiano Enrico Ferri, pai da Sociologia Criminal, corrobora mais uma vez que somente as hipóteses de excludentes de Ilicitude (legais) são capazes de isentar a responsabilidade criminal. O Autor afirma que o ímpeto passional não é justificativa plausível para absolvição de "delinquentes passionais" enumerando vários tipos de paixões como a amorosa, o ódio, o ciúme e demais sentimentos que possam servir de pretexto para levar o ser humano a delinquir. Inclusive ressalta que esses sentimentos como ódio, amor, ciúme, inveja, divergências religiosas ou políticas não são suficientes para tornar alguém criminoso, não isentando da responsabilidade criminal, mas somente uma personalidade delinquente poderá agir sob esses impulsos para a prática do delito. Mais uma vez se coloca contra a vingança, inclusive do Estado, sendo contra a pena de morte, e o ponto alto é a observação de causas dos Tribunais do Júri italianos em que o número de assassinatos de mulheres sob a pecha de adúlteras, teriam servido para se tentar justificar o ímpeto delinquente do suposto cônjuge traído. Foi um defensor contra o que no Brasil chamamos por séculos nos tribunais de legítima defesa da honra e clama para o sentimento de solidariedade pela vida discordando de todas as justificativas que possam condenar alguém à morte ou que as paixões justifiquem o ato de matar, devendo os casos de assassinatos cometidos por 'maridos-homicidas' sob pretexto de adultério  sofrerem a reprimenda da lei. É um texto obrigatório e atual diante dos inúmeros casos de feminicídio em que o sentimento de "egoísmo-possessório" é contrário à ética e à paz social.

Laura Berquó

O "NOVO EUROPEU" E A BRANQUITUDE BRASILEIRA




O que deveria ser discutido sobre a nova lei italiana de 23 de maio de 2025, que limitou o direito à cidadania italiana para ítalo-descendentes, tendo os nacionais brasileiros, norte-americanos, argentinos, etc, como os mais atingidos? Iremos iniciar nosso estudo sobre o conflito da braquitude brasileira entre ser brasileiro e ser um "novo europeu" e o conceito de nacionalidade. Ao final desse texto, será feita uma proposta de estudo sob o aspecto constitucional e direitos humanos.

Apesar do Brasil ser um país que sempre recepcionou um número grande de imigrantes, em diversos momentos específicos de sua história, sempre se verificou nos séculos XX e XXI uma busca desenfreada pela nacionalidade de países europeus pelo critério ‘ius sanguinis’ por brasileiros, cujos antepassados de origem europeia corresponderiam a um bisavô (1/8 da ancestralidade) ou até mesmo judeus sefarditas que vieram expulsos para o Brasil com a perseguição iniciada em Portugal ainda no início do século XVI, sob o governo de Dom João III, o Colonizador, pessoas que pela origem judaica não eram consideradas nacionais e muito menos europeias como se verá mais adiante.

Entretanto, o conceito de branquitude, cunhado por Du Bois nos anos 1930, pode perfeitamente explicar tal fenômeno, quando verifica-se que a identificação do “branco” ou que respira a branquitude se dá pelo alinhamento da racialização dos “outros” e não pelo sentimento de classe, embora as levas imigratórias europeias para o Brasil tenham ocorrido devido ao nível de miserabilidade de diversos europeus, como se deu também nos EUA, após o fim da escravização de negros.

Segundo Lourenço Cardoso, ao analisar a obra de Du Bois (Black Reconstruction  in the United States, 1935), retrata justamente o quadro em que se constrói a branquitude norte-americana a partir de imigrantes europeus, o que não se vê de forma diferente da branquitude acrítica brasileira formada pelos descendentes de imigrantes europeus que não se identificam com os negros descendentes de escravizados, mas com seu patrão pelo critério fenotípico, não desenvolvendo um sentimento de classe social, mas racializando o “outro” e colocando o negro em situação de subalternidade.

O estudo de Maria Lúcia Lamounier identifica as primeiras levas imigratórias para o Brasil, após o fim oficial do tráfico negreiro e que muito enriqueceu companhias a exemplo da Vergueiro & Cia, de propriedade do Senador Vergueiro, especializada em trazer mão-de-obra alemã e italiana a partir de 1847 (1988: pp. 29-37). 

Importante salientar que apesar do Brasil ter sido um país com receptividade de intensa onda imigratória, o reconhecimento de uma nacionalidade de país europeu para descendentes com ascendência um tanto longínqua (porque vai muito além do pai ou mãe de nacionalidade estrangeira) é um privilégio da branquitude. Há um aspecto a ser posto que provavelmente por essas pessoas se identificarem com uma "identidade” europeia, provavelmente também não se identificariam com uma "identidade” brasileira ou pertencente a outro país colonizado. Não há um sentimento integral de pertencimento. 

Segundo dados do site NacionalidadePortuguesa.com, Portugal foi o país de destino com maior número de pedidos para dupla cidadania no período de 2002 a 2017, deixando para atrás nessa ordem: Itália, Espanha e Alemanha.

Segundo a Associação dos Notários e Registradores do Brasil - ANOREG, em torno de 15 milhões de brasileiros poderão pedir a cidadania italiana, haja vista que a extensão para sua concessão alcança inclusive bisnetos, mesmo que o requerente tenha apenas 1/8 de ascendência italiana.

A busca por esse tipo de identidade europeia, que foi facilitada pelas informações disponíveis em redes sociais e pelos países europeus concedentes fez com que escritórios de advocacia se especializasssm e divulgassem seus serviços em redes como o Instagram, bem como a consulta aos sites de genealogias disponíveis para identificação de ancestrais sefarditas, oferecendo serviços, inclusive  de pesquisa de documentação. 

A Europa em seu projeto de expansão comercial, político e econômico por meio da União Europeia tem alimentado o sonho de um brasileiro ou descendente de europeu de um dos países colonizados de obterem cidadania de algum país do Velho Mundo para “usufruírem” do trânsito livre e das benesses, ainda que simbólicas de ser reconhecido como europeu, dando um sentido pós-moderno à branquitude.

Ocorre que a nacionalidade de um país europeu não protege cidadãos brasileiros de serem vítimas de xenofobia e racismo. Como pode se inferir, Portugal, apesar de ser o país que mais concede cidadania a brasileiros, também é líder na prática de xenofobia contra estes. Dados de 2023 revelam que a xenofobia contra brasileiros em Portugal cresceu 505%.

Em Zygmunt Bauman, mais precisamente em 'Europa. Uma aventura inacabada' em que o sociólogo polonês analisa o sentido europeu de viver no mundo, de se lançar em aventuras e expandir suas fronteiras, sejam elas territoriais ou culturais, há como compreender do ponto de vista eurocêntrico o termo “descobrimento” para fins de colonização. Pensando sobre isso, o reconhecimento da nacionalidade de descendentes de diversos europeus, pelo critério do sangue, é uma forma muito inteligente de estender a Europa dentro da lógica europeia de estar no mundo. Mas apenas para entender o modo de ver europeu e sob essa ótica como "descobridores" que "inventam" novosmundos (no sentido técnico de "descoberta" = "invenção"), e deles "extraem" o que bem desejam como bom aventureiros o que ocorreu com o "Descobrimento do Brasil", “da América”, etc. Esse espírito de aventura marca um novo mundo inventado (descoberto) oficialmente a partir de 22 de abril de 1500 para os “brasileiros”.

Seguindo essa lógica de expansão de uma Europa por questões econômicas, comerciais e políticas que tem atualmente a União Europeia como forjadora de uma “identidade europeia” (Castells, 1999), atente-se para o fenômeno de descendentes de europeus que buscam o reconhecimento de sua nacionalidade pelo critério sanguíneo, o que demonstra como diz Stuart Hall que o indivíduo teria uma identidade forjada a partir de vários elementos, desde gênero, classe social, origem, cor, etnia, etc, mostrando a mobilidade da formação da identidade na pós-modernidade (2006).

Dentro desse fenômeno de busca por uma nacionalidade que permita a circulação e entrada como “europeu” na União Europeia, tem a questão dos descendentes de judeus sefarditas de origem portuguesa e/ou espanhola, que estão nas Américas desde o início da colonização, sendo interessante as pesquisas contratadas de escritórios especializados para fins de obtenção de cidadania portuguesa ou espanhola. 

Mas o que causa mais espanto não é isso e sim o fato de que judeus no continente europeu nunca foram tido como “europeus” conforme Sorlin, justamente pelo critério de sangue.

O Anti-semitismo Alemão do historiador Pierre Sorlin (1974) é um texto importante para entender que o antissemitismo na Europa tem início no século I d.C., sendo os judeus tratados como estrangeiros em terras europeias (e no caso dos germânicos em especial na região da Renânia). Houve um leve alívio no início da Alta Idade Média quando alguns direitos foram reconhecidos aos judeus, mas sempre na condição de estrangeiros, ainda que nascidos no Velho Continente. 

O racismo contra judeus e negros é estrutural. Segundo Francisco Bethencourt, “o racismo na forma de preconceito étnico associado a ações discriminatórias foi motivado por projetos políticos” (2018, p.22). Para Bethencourt, antes havia somente o preconceito étnico com base na religião como ponto central do mundo Jerusalém. A partir das Grandes Navegações no século XV, o preconceito étnico-racial se caracteriza com a ascensão de um pensamento supremacista branco tendo como centro o continente europeu.

O que se entende como nacionalidade? É tão frágil o conceito histórico assim como é apenas ficção o conceito de Estado Moderno, produto de criação burguesa de fins da Baixa Idade Média com o ressurgimento do Direito Romano para fins de centralização e reforço de poder político de alguns reis e autonomia comercial da classe burguesa frente ao Direito Feudal (Gilissen: 1979). 

O Estado é produto do capitalismo e da queda do sistema feudal e o Direito serve justamente para legitimar a sociedade que é estruturada dentro desse Estado.

O Estado-nação continua a evolução do Estado Moderno sendo também ele uma ficção, assim como a ideia de nacionalidade. No Estado Moderno se tem a ideia de territorialidade, enquanto no Estado – nação se tem a ideia de identidade. O conceito de nação é um conceito burguês, fruto evolutivo do Estado Moderno.

No que tange ao direito de nacionalidade pelo critério 'ius sanguinis', este é um critério antigo que correspondia ao direito de filho de pai ou mãe de um determinado nacional nascido no estrangeiro. Mas o que tem se visto como resultado do fenômeno da colonização e imigração em massa de europeus para os países colonizados até a primeira metade do século XX é a mobilidade nesse conceito de cidadania pelo critério de sangue que atualmente abrange a ascendência de avoengos até os trisavós em alguns casos.

Isso demonstra que a nacionalidade é uma ficção e que a identidade forjada a partir de uma nacionalidade pelo critério sanguíneo dependendo do nível de parentesco também inclui diversas variantes. Para se ter uma ideia até 1948 os filhos de mulheres italianas nascidos no exterior não tinham direito à nacionalidade italiana pelo critério sanguíneo, somente sendo validada a linhagem masculina. 

Tal mudança ocorreu a partir do princípio da igualdade (entre homens e mulheres) previsto no art. 3º3 da Constituição da República Italiana de 1948. Embora possa se alegar a autodeterminação dos povos, o fato é que essa autodeterminação se move de acordo com outros interesses estranhos ao sentimento de pertencimento.

Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade conforme o artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e artigo 20 da Declaração Universal de Direitos do Homem (Accioly et ali: 2017). Mas o que impulsiona a busca por uma outra nacionalidade e a facilidade na sua concessão por países europeus quando seus nacionais não estão muitas vezes alinhados à política unificadora de identidades da União Europeia, chegando a se questionar sobre o fim do Estado-Nação? (CASTELLS: 1999).

A forma de aquisição da nacionalidade ocorre de forma originária ou derivada, sendo o segundo caso aplicado para naturalizados. De fato, como informa Aciolly et alli, são os Estados dentro da sua autodeterminação que por meio de leis podem definir quem são seus nacionais. Porém, a nacionalidade pela via sanguínea sempre foi atributo de transmissibilidade de genitores.

Não restam dúvidas que o critério do 'ius soli' foi criado pelos países colonizados da América. A questão que se coloca é como mesmo após hiatos geracionais se concedem nacionalidades pelo critério de sangue por antigos países colonizadores europeus. Como se constrói um europeu com 1/8 de sangue ou 1/16 de sangue nos casos de trisavós? Essa nova identidade “europeia” fruto da pós-modernidade onde há conflitos identitários com nacionais europeus é fruto do projeto europeu (leia-se União Europeia) de expansão da Europa no mundo, voltando-se novamente a Bauman quando diz que ser europeu é um sentido de viver no mundo, de se lançar em aventuras e expandir suas fronteiras, sejam elas territoriais ou culturais. 

Há uma tensão de identidade formada pela busca de privilégio da branquitude brasileira por uma nacionalidade europeia e assim se tornar um “novo europeu”, superior ao próprio sentimento de pertencimento enquanto brasileiro multiétnico, seduzidos que estão pelas possibilidades de uma Europa propagada como unificada pela União Europeia. Ressalte-se que a proposta é analisar a busca por uma identidade europeia por brasileiros e não por outros povos colonizados por europeus.

O fato de brasileiros ou outras pessoas oriundas de países colonizados serem reconhecidos como “europeus” não impede que existam conflitos entre os diversos nacionais e grupos étnicos de países europeus que não se identificam com essaEuropa proposta pela União Europeia para fins políticos e econômicos e buscam por isso defender a sua identidade étnica e nacional, aumentando os casos de xenofobia (CASTELLS: 1999). 

Nesse caso, os brasileiros, na maior parte multiétnicos, com sua auto percepção forjada na branquitude, mas vistos como não-brancos por europeus, estão expostos às violações de direitos humanos em decorrência de xenofobia e racismo. 

Porém, não deixa de assim mesmo, cumprirem com um propósito de expansionismo europeu. No caso, a branquitude brasileira com características miscigenadas tenta ter acesso aos privilégios do contrato racial, haja vista que uma nacionalidade europeia é um privilégio branco daqueles que não tiveram seu direito à ancestralidade apagados pelo tráfico de pessoas negras escravizadas. Segundo Sueli Carneiro, o contrato racial fornece vários privilégios aqueles possuidores de um status de brancos, aderindo à ideia de uma supremacia branca

"No livro The Racial Contract, o filósofo norte-americano Charles W. Mills propõe que tomemos a inquestionável supremacia branca ocidental no mundo como um sistema político não nomeado, porque ela estrutura “uma sociedade organizada racialmente, um Estado racial e um sistema jurídico racial, onde o status de brancos e não brancos é claramente demarcado, quer pela lei, quer pelo costume.  (...)A branquitude como sistema de poder fundado no contrato racial, da qual todos os brancos são beneficiários, embora nem todos sejam signatários, pode ser descrita no Brasil por formulações complexas ou pelas evidências empíricas, como no fato de que há absoluta prevalência da brancura em todas as instâncias de poder da sociedade (...). " (2011, pp 85-86)


Dessa forma, o critério adotado como sendo o critério do sangue (ius sanguinis) é uma forma na verdade de expansão extraterritorial, política e econômica de uma Europa que hoje busca se fazer una por meio da União Europeia em face do poderio norte-americano sobretudo, mas como continuidade do projeto colonialista na pós-modernidade, tendo as redes sociais um papel relevante nesse projeto, do quepropriamente uma ideia genuína que corresponda ao pertencer e ser identificado como um legítimo europeu.

Essa proposta expansionista não protege seus novos “nacionais” de violações com base na xenofobia e racismo, como já afirmado, embora haja legislação específica para repressão de tais práticas, conforme a Lei nº 93, de 23 de agosto de 2017 da República Portuguesa. Passam a ser inclusive os oprimidos dentro de uma visão interseccional, quando comparados com os nacionais naturais e pertencentes ao grupos étnicos originários desses países europeus. O conceito de interseccionalidade desenvolvido por Kimberlé Crenshaw após a Conferência de Durban como crítica ao racismo patriarcal conceitua a interseccionalidade como cruzamento dos sistemas de opressão que se sobrepõe um ao outro se interligando pelos critérios de classe (capitalismo), gênero (cisheteropatriarcado) e raça/cor (racismo) (AKOTIRENE: 2019).

iremos continuar a discussão da temática a partir da análise do constitucionalismo multinível violações de direitos humanos decorrentes de xenofobia e racismo em países diversos.


Laura Berquó


FONTES:

8.REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando et ali. Manual de direito internacional público. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

ANOREG. Clipping – R7 – Quase 15% dos brasileiros podem pedir cidadania italiana. 

In: https://www.anoreg.org.br/site/clipping-r7-quase-15-dos-brasileiros-podem-pedir-cidadania-italiana/ Acesso em 24 de setembro de 2023. 

BAUMAN, Zigmunt. Europa. Uma aventura inacabada. Zahar: Rio de Janeiro, 2006.

____. Modernidade líquida. Zahar: Rio de Janeiro, 1999.

BETHENCOURT, Francisco. Racismos. Das cruzadas ao século XX. Tradução Luis 

Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: a supremacia racial e o branco 

anti-racista. Revista Latino Americana de Estudos Sociais. Vol 8. CLACSO: 2010. In: 

www.umanizales.edu.co/revistacinde/index.html

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 

2011.

CASTELLS, Manuel. Fim de milênio. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Volume 3. 3 Edição. Tradução de Klaus Brandini Gerhardt e Roneide Venancio Majer. Paz e Terra: São Paulo, 1999.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução Claudio Willer. Veneta: São Paulo, 2020. 

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. In: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/novembro/artigo-15deg-todo-o-individuo-tem-direito-a-ter-uma nacionalidade

DU BOIS, W. E. Burghardt. Black reconstruction. Harcout, Brace and Company: New 

York, 1935.

____. As almas do povo negro.Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Sem data

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Sebastião Nascimento e Raquel Camargo. UBU: São Paulo, 2020.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Calouste Gulbekian: Lisboa, 1979.

GUERREIRO RAMOS, Alberto. Patologia social do branco brasileiro. In: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/247547/mod_resource/content/1/guerreiro_patologia.pdf

HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11. ed. DP&A: Rio de Janeiro:, 2006.

LAMOUNIER, Maria Lucia. Da escravidão ao trabalho livre. Papirus: Campinas, 1988.

NACIONALIDADE PORTUGUESA ASSESSORIA. In:https://www.nacionalidadeportuguesa.com.br/portugal-e-primeiro-lugar-em-pedidos-de- dupla-cidadania/ . Acesso em 24.09.2023

Perspectiva: São Paulo, 1974.

REINO DA ESPANHA. Constituição Espanhola. Constitución Española. In: 

https://www.tribunalconstitucional.es/es/tribunal/normativa/Normativa/CEportugu%C3

%A9s.pdf

REINO DA ESPANHA. Lei da Memória Democrática, de 21 de outubro de 2022.

REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA. Lei Fundamental da República Federal 

da Alemanha (de 1949). Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland In.: https://www.bpb.de/system/files/dokument_pdf/Grundgesetz_DE_Standard_WEB.PDF

REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA. Nova Lei de Concessão de Cidadania Alemã de 19 de Agosto de 2021.

REPÚBLICA ITALIANA. Constituzione Italiana. Edizione in Lingua Portughese. 

Senato della Republica. In: https://www.senato.it/sites/default/files/media-

documents/COST_PORTOGHESE.pdf

REPÚBLICA ITALIANA. Lei nº 91 de 15 de fevereiro de 1992 

REPÚBLICA PORTUGUESA. Lei da Nacionalidade Portuguesa nº 23/2015 

REPÚBLICA PORTUGUESA. Constituição Portuguesa de 1976. In: 

https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx

REPÚBLICA PORTUGUESA. Lei nº 93, de 23 de agosto de 2017 (Estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem) 

In:https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/93-2017-108038372

UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia (TUE) / Tratado de Maastricht 

https://www.europarl.europa.eu/about-parliament/pt/in-the-past/the-parliament-and-the-treaties/maastricht-treaty

VALINOR, Rodrigues. Xenofobia em Portugal cresce 505% nos últimos anos. In: 

https://www.remessaonline.com.br/blog/xenofobia-portugal/ Acessado em 29 de janeiro de 2024.

VIEIRA, Roberto Átila Amaral. Introdução ao estudo do Estado e do direito. Forense: Rio de Janeiro, 1986.


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O SONHO COM A BELA OYÁ

 





O SONHO COM A BELA OYÁ


Recorrentemente eu tinha o mesmo sonho: minha mãe Iansã me perseguia muito braba, com sua roupa antiga, rosa-coral, com várias saias engomadas por baixo, bordados, e com seu filá cobrindo o rosto. Alta, ligeira, passava por ladeiras e calçadas de calcário, em vias coloniais, atrás de mim.

Foram vários sonhos e na maioria das vezes eu me escondia, porque não conseguia encarar a sua fúria. Para acalmá-la, no último sonho, ia para o meio de pessoas e oferecia acarajé ao público.

Demorei a entender o porquê desses sonhos recorrentes e do medo que eu sentia da minha própria Yabá, a Bela Oyá, que por diversas vezes espantou a morte de perto de mim.

Na minha infância ela era a minha paixão, bem tudo que vibrava ao arquétipo dela. Mas a gente cresce e outras exigências nos tiram de nosso mundo imaginativo e criativo.

Creio que quando crianças, estamos mais ligados ao lado psíquico feminino. Mas a busca pela sobrevivência e a dureza da vida, das instituições, das leis, favorecem o desenvolvimento do nosso aspecto masculino da psique. 

Foi então que lendo um autor junguiano, Robert A. Johnson, daquela famosa trilogia He, She e We, consegui entender o que meu sonho revelava.

Em seu livro 'Feminilidade Perdida e Reconquistada', Robert A. Johnson faz a seguinte observação sobre o feminino e a sombra:


"CONVIDANDO A SOMBRA PARA JANTAR

Repetimos o óbvio ao dizer que a energia feminina é e foi um elemento excluído na cultura ocidental. O que se torna ainda mais complexo para o crescimento e entedimento humanos é que um elemento excluído frequentemente parece uma energia "escura" ou "de  sombra" antes de ser reintegrado. Jung perguntou certa vez: "se você for perseguido por um leão no sonho (perseguição é a forma favorita dos elementos excluídos apresentarem-se nos sonhos), que deverá fazer?"  Ora, vire-se, é claro, e diga ao leão: "Por favor, tenha a bondade de me comer". Então o leão explica que ele é o emissário de Deus e por que você dificultou tanto a tarefa de entregar um presente divino para você."


Veio então a compreensão e a vontade de ficar, de permanecer, de não mais fugir. Da próxima vez, perguntarei à minha mãe Iansã o que ela deseja. Talvez ela tenha o presente da integração psíquica para me oferecer e eu não precise mais fugir de nada, nem de mim. Epa Hey, Bela Oyá! 


Laura Berquó

domingo, 14 de setembro de 2025

DORORIDADE E VILMA PIEDADE


"DORORIDADE" pela Prof. Dra VILMA PIEDADE. O termo sororidade foi criado pela feminista Kate Millett em 1970 (Portal Geledes/ Texto : Sororidade: o valor da aliança entre mulheres). O termo Dororidade foi criado pela professora, intelectual e feminista negra Vilma Piedade em 2017. A ideia de sororidade é uma proposta de transformação a partir da empatia que poderia unir mulheres no apoio mútuo contra o pacto masculino estabelecido pelo patriarcado. Na prática a 'sororidade', embora a proposta de Kate Millet tenha sido positiva, demonstrou ser mais um reforço ao pacto narcísico entre mulheres de determinadas classes sociais, grupos étnicos, que estivessem próximas de suas próprias realidades excluindo outras mulheres. Por isso, Vilma Piedade explica como surge o termo "dororidade" quando diz que para a realidade de muitas mulheres negras vitimadas pelo racismo e por consequência a exclusão social, o sentimento deve ser de "dororidade". A empatia com a dor de outras mulheres racializadas fora de seu pacto narcísico,  como crítica à branquitude acrítica foi o que entendi da criação do termo. Podemos estender a compreensão da Dororidade a outros grupos de mulheres excluídas.

Laura Berquó

sábado, 13 de setembro de 2025

O VOTO FEMININO: PEÇA DE 1890 DE AUTORIA DE JOSEFINA ÁLVARES DE AZEVEDO


 O VOTO FEMININO: PEÇA DE 1890 DE AUTORIA DE JOSEFINA ÁLVARES DE AZEVEDO


Em 1890, a feminista paraibana Josefina Álvares de Azevedo publicou a comédia O Voto Feminino, peça teatral de apenas 1 ato. As personagens são: a protagonista Inês, que conseguiu convencer sua filha Esmeralda e sua criada Joaquina a lutarem pelo voto feminino, pelo direito de ocuparem cargos públicos, propondo uma nova divisão sexual do trabalho. Inês antevê que um dia as mulheres serão iguais aos homens perante a lei. O antagonista é o seu marido, o ex-Conselheiro Anastácio, que busca apoio no seu genro Rafael, no criado do Doutor Florêncio, Antônio (noivo de Joaquina) contra a luta das mulheres pelo direito ao voto, temendo perder espaço político, poder e claro, temendo uma nova divisão sexual do trabalho. No final, os homens vencem.

Josefina Álvares de Azevedo denuncia na referida peça a apropriação intelectual do trabalho de mulheres de políticos por seus maridos. Sobre a época, a referida comédia integra a primeira parte da obra da autora A Mulher Moderna. Josefina Álvares de Azevedo, no texto que antecede à peça teatral, reclama, assim como reclamou Nísia Floresta anteriormente, que a mulher tem direito à instrução e que possui as mesmas condições que os homens de ocuparem cargos públicos. Ainda, reclama que dos 21 "conselheiros" da Assembleia Constituinte de 1890, 2/3 se manifestaram contra o direito ao voto feminino. Josefina busca refutar todas as alegações trazidas na época para desmerecer o direito das mulheres ao voto.

As mulheres no Brasil inteiro só puderam (facultativamente) votar e serem votadas com o Decreto nº 21.076 de 24 de fevereiro de 1932. O Código Eleitoral de 1932, em seu artigo 2º dizia “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Codigo”

Mas as mulheres analfabetas só puderam votar em 1985 com a Emenda Constitucional nº 25 ao texto de 1967. E para finalizar, quero aqui mencionar outras duas grandes figuras paraibanas na defesa do voto feminino: a primeira advogada paraibana Catharina Moura, que fez seu discurso em 1913 defendendo o voto feminino (o acervo do IHGP se encontra com os textos rasgados do jornal A União que publicou o discurso), antes mesmo de Bertha Lutz, e o grande feminista e intelectual paraibano Carlos Dias Fernandes que era um defensor dos direitos das mulheres participarem ativamente da vida política.

Laura Berquó

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 4



OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 4


Prezados leitores, antes de darmos prosseguimento com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833, precisamos trazer algumas correções referentes à publicação anterior com as contribuições de Padre Vitor Pereira, sacerdote Greco Católica-Melquita, Doutor em Direito pela UERJ e meu confrade do Instituto dos Advogados Brasileiros.

 Como informado, uma das curiosidades da pesquisa decorreu da necessidade de verificar a informação dos antigos de que os padrinhos seriam tutores de órfãos. Segundo Antônio de Souza Gouveia (1891):  

“Órphão, no sentido jurídico, é aquelle que não tendo a idade cumprida de 21 annos, ficou sem pai e está sob a administração do Juiz de Órphãos”. 

Órfão, portanto, era o menor de 21 anos que não tinha PAI. No caso das crianças expostas, estas conseguiam a maioridade antes, aos 20 anos de idade. Em ambos os casos, de expostos e de ingênuos órfãos, a nomeação de tutores ocorria ao completarem 07 anos, conforme as Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, Livro 4º, Título 102 e o Alvará de 31 de Janeiro de 1775, segundo ainda Gouveia.

O que acontece é que nas Ordenações Filipinas havia um rol de pessoas que não poderiam ser tutoras. Os padrinhos só poderiam ser nomeados tutores por testamento e não por direito previsto nas Ordenações. Uma das pessoas que não poderiam ser tutoras eram os religiosos, conforme exposto no Livro IV, Título CII.

Com base nisso, trouxemos um registro de um dos batizados em que o Reverendo Vigário da matriz foi o padrinho da párvula Maria, de seis meses de idade, em que a mãe Vicencia Moreira da Ressurreição, apesar de casada, batizou sozinha sua filha, tida por natural, pelo não reconhecimento da paternidade pelo marido João Elias:


“Aos quinze de agosto do anno de mil oitocentos e trinta e três, nesta matriz de Nossa Senhora das Neves, de minha licença o Padre Antônio Lourenço de Almeida, batizou solenemente a párvula Maria, com idade de seis mezes, filha natural de Vicencia Moreira da Ressurreição, cazada, com João Elias, o qual retirou-se da sua companhia. Foi padrinho o Reverendo Vigário desta Matriz. E para constar mandei lançar este assento que no Archivo desta matriz achei por lançar, e o assigno, por estar completamente autorizado.”


Informei que o Vigário, apesar de padrinho, não poderia ser nomeado tutor conforme visto nas Ordenações Filipinas, porque os religiosos não podiam ser tutores. Conforme explicações dadas pelo Padre Vitor Pereira, o fato de ser padre não tirava a possibilidade de alguém ser tutor. Segundo Padre Vitor Pereira:

“Quando as Ordenações falam em RELIGIOSOS, não estão a se referir a ministros religiosos em geral. E sim aos membros de institutos religiosos que fazem ao menos os votos de pobreza, obediência e castidade, tais como freis e monges.”

E prossegue:

“Os padres chamados diocesanos ou seculares não são religiosos nesse sentido e poderiam ser normalmente tutores. Muito provavelmente o Vigário era padre secular, logo, poderia ser tutor sim.”

Assim umas das edições das Ordenações Filipinas copilada por Cândido Mendes de Almeida traz a distinção entre clérigos e religiosos:

“Os Presbytheros e mais Clérigos são admitidos à Tutoria legítima querendo, o que devem declarar no praso de quatro meses.”

Portanto, religiosos são aqueles que pertencem às Ordens religiosas: sacramentinos, jesuítas, benediditinos, franciscanos etc. Excluindo portanto, os sacerdotes seculares.

Segundo ainda Padre Vitor, “os religiosos padeciam de morte ficta. Eram como se fossem mortos civilmente. Mas os padres seculares não eram religiosos”.

Feitos os importantes esclarecimentos com as elucidações de Padre Vitor Pereira, aguardemos a continuidade da série com enfoque na condição das crianças nascidas escravizadas.


Autora: Laura Berquó. Membro Efetivo das Comissões de Direitos Humanos, Liberdade Religiosa, Constitucional, Família e Sucessões.

Fontes:


Conversa com Padre Vítor Pereira sobre o conteúdo do OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 3

Ordenações Filipinas recopiladas por por Candido Mendes de Almeida, 1870.

GOUVEIA, Antônio de Souza. Direito dos Órphãos ou Apontamentos sobre o Processo Orphonológico. Parahyba: Typ. E Lith. a Vapôr Manoel Henriques, 1891






OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 3

 




OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 3


Prezados leitores, prosseguimos com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833. Apesar do foco ser as crianças que já nasciam escravizadas, hoje trataremos das crianças nascidas livres (ingênuas) com foco na orfandade e escolha de tutores. A orfandade de crianças que nasciam escravizadas merece um tópico próprio. Também falaremos da miscigenação da sociedade local da época e a relação com classe e gênero.

 A escolha do ano de 1833 não foi aleatória, mas devido ao fato de que os livros anteriores ao ano de 1833 foram perdidos. A Paróquia em questão nasce com a própria fundação da cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), no final do século XVI. Conforme já exposto, foram um total de 297 batizados, sendo 296 de crianças e 01 de uma mulher adulta escravizada. Das 296 crianças, 27 nasceram escravizadas.

Uma das curiosidades da pesquisa decorreu da necessidade de verificar a informação de que os padrinhos seriam tutores de órfãos. Quem eram os órfãos para o Direito? Segundo Antônio de Souza Gouveia (1891): “Órphão, no sentido jurídico, é aquelle que não tendo a idade cumprida de 21 annos, ficou sem pai e está sob a administração do Juiz de Órphãos”. 

Órfão, portanto, era o menor de 21 anos que não tinha PAI. No caso das crianças expostas, estas conseguiam a maioridade antes, aos 20 anos de idade. Em ambos os casos, de expostos e de ingênuos órfãos, a nomeação de tutores ocorria ao completarem 07 anos, conforme as Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, Livro 4º, Título 102 e o Alvará de 31 de Janeiro de 1775, segundo ainda Gouveia.

No caso, segundo as Ordenações Filipinas, pessoas escravizadas não poderiam ser tutoras. Também as mulheres só poderiam ser tutoras se avós ou mãe do órfão, haja vista que órfão no sentido jurídico era quem não tinha pai, genitor (pai falecido ou incógnito). Também não podiam ser nomeados tutores os “acatholicos” no período em análise, segundo Gouveia, porém não encontrei ainda a fonte em que ele se baseia.

Segundo as Ordenações Filipinas, Livro IV, Título CII, não podiam ser tutores:

 “que per Direito o póde ser, que não seja menor de vinte e cinco annos, ou sandeu ou prodigo, ou inimigo do orfão, ou pobre ao tempo do fallecimento do defunto, ou scravo, ou Infame, ou Religioso, ou impedido de algum outro impedimento perpetuo”.


Embora as mães e avós pudessem ser tutoras, a mãe perdia essa condição caso viesse a contrair novas núpcias (mesmo em caso de nova viuvez). Mais adiante, em 1859, temos o Aviso nº 312 de 20 de outubro de 1859, a partir de Consulta feita ao então Ministério dos Negócios da Justiça que dizia que deveria se nomear tutor a menor, filho de pai incógnito se a mãe não fosse de “bons costumes”:



“AVISO N.º 312 DE 20 DE OUTUBRO DE 1859.

- Declara que a menor, filha de pai incognito, e que tem mãi viva, he orphã em face das Leis do Paiz.2ª Secção. Ministerio dos Negocios da Justiça. Rio de Janeiro em 20 de Outubro de 1859.

Ilmo. e Exm. Sr. - Tendo essa Presidencia, em officio de 30 de Abril ultimo, consultado á este Ministerio se a menor, filha de pai incognito, e que tem mãi viva, deve ser considerada Orphã em face das nossas Leis, por isso que se deu, no termo de Santarem, o facto de ter o Vigario da vara recusado celebrar, sem o concurso do Juiz de Orphãos, o casamento da menor de dezesete annos Rosa Maria filha natural de Candida Maria da Conceição e de pai desconhecido;

Sua Magestade o Imperador, Conformando-se com a opinião do Consultor interino dos Negocios da Justiça e com o parecer do Conselheiro Procurador da Corôa, Manda declarar a V.Ex. que, negando as nossas Leis expressamente o patrio poder ás mãis, o filho de pai incognito acha-se comprehendido na jurisdicção orphanologica e conseguintemente debaixo da

inspecção directa do Juiz de Orphãos, que póde nomear-lhe tutor ou curador, quando sua mãi não tenha bons costumes, dando-o até á soldada á simile dos outros Orphãos e dos expostos, He claro, pois, que o casamento da menor não poderia ser effectuado sem licença do Juiz, á vista da Ord. Liv. 1º. Tit. 88 xx 19 e 27 e Aviso nº 70 de 18 de Julho de 1846.

Deos Guarde a V. Ex. - João Lustosa da Cunha Paranaguá - Sr. Presidente da Provincia do Pará”



E os padrinhos? Diferente das lendas que ouvimos, padrinho não tinha preferência para ser nomeado tutor em casos de orfandade (morte do pai) dos afilhados. Tal nomeação só poderia ser feita por testamento. Nos demais casos em que não havia previsão testamentária, caberia ao Juiz de Órphãos decidir os pedidos de tutela. Talvez de fato, os padrinhos exercessem algum tipo de tutela informal. Mas não havia nenhum privilégio legal por ser padrinho, a não ser que houvesse designação por testamento feito por pai ou avô.

Na cidade da Parahyba (atual João Pessoa) em 1833 temos as seguintes conclusões com base nos dados coletados, considerando que como as madrinhas não poderiam ser nomeadas tutoras, sua figura era dispensável muitas vezes no momento do batizado. Hoje trataremos somente das crianças que eram livres, chamadas ingênuas, porque o tratamento dado às crianças escravizadas será abordado na continuidade da série:


Meninos brancos com padrinho e madrinha: 30

Meninos negros livres com padrinho e madrinha: 2

Meninos indígenas livres com padrinho e madrinha: 4

Meninas indígenas livres com padrinho e madrinha: 1

Meninos pardos livres com padrinho e madrinha: 18

Meninas brancas com padrinho e madrinha:30

Meninas negras livres com padrinho e madrinha: 04

Meninos pardos livres com padrinho e madrinha negros (“crioulos”): 2

Meninas pardas livres com padrinho e madrinha: 23


Total: 114


Quando resolvemos separar as crianças livres que somente possuíam padrinhos (que seriam em tese aptos para serem nomeados tutores) temos:

Meninos brancos somente com padrinho: 31

Meninos indígenas somente com padrinho: 01

Meninos pardos livres somente com padrinho: 19

Meninos negros livres somente com padrinho: 09

Menino “cafuzo” livre somente com padrinho: 01

Meninas brancas somente com padrinhos: 32

Meninas indígenas somente com padrinho: 01

Meninas negras livres somente com padrinho: 04

Meninas pardas livres somente com padrinho: 12

Menina “cafuza” livre somente com padrinho: 01


Total: 111


Quanto aos batismos de crianças livres por procuração temos:


Crianças batizadas com madrinhas por procuração: 12

Crianças batizadas com padrinhos por procuração: 03


Citemos 01 caso de batismo por procuração de duas meninas gêmeas:


Roza e Apolinária, em 06.10.1833, filhas naturais de Francisca Xavier dos Santos, pardas. Padrinhos: Sargento-mor Joze Thomas Henriques (Procurador: Padre Antônio da Trindade Antunes Meira) e Donna Maria Izabel do Rozário (Procurador: Francisco Fernandes Lima).


Desse total de 15 crianças, 09 eram crianças pardas livres, 05 eram crianças brancas e 01 era criança negra livre.

Curiosamente consta 01 assentamento sem validade e 01 menino branco sem padrinho ou madrinha. Das meninas brancas expostas (não houve registro de meninos expostos em 1833) temos:

Meninas expostas (todas brancas) com padrinho e madrinha: 01

Meninas expostas (todas brancas) somente com padrinho: 02

Conclusão: 265 batizados, sendo aproximadamente 114 crianças somente com padrinhos. Como dito, a figura da madrinha não teria tanta relevância, haja vista que somente as avós e mães podiam ser tutoras. As madrinhas jamais seriam nomeadas tutoras por testamento ou poderiam se candidatar a esta condição de seus afilhados órfãos.

Ademais, as mulheres que não tivessem “boa conduta”, desrespeitassem os “bons costumes” não poderiam ser tutoras de seus filhos. Mas qual era o padrão de comportamento sexual verificado nas mulheres da cidade da Parahyba em 1833? 

As mulheres brancas abastadas casavam e eram chamadas de “Donna”. As mulheres brancas pobres viviam em união estável ou tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, ainda que filhos naturais, com a exceção de uma mulher branca casada que o marido não reconheceu a paternidade:


“Aos quinze de agosto do anno de mil oitocentos e trinta e três, nesta matriz de Nossa Senhora das Neves, de minha licença o Padre Antônio Lourenço de Almeida, batizou solenemente a párvula Maria, com idade de seis mezes, filha natural de Vicencia Moreira da Ressurreição, cazada, com João Elias, o qual retirou-se da sua companhia. Foi padrinho o Reverendo Vigário desta Matriz. E para constar mandei lançar este assento que no Archivo desta matriz achei por lançar, e o assigno, por estar completamente autorizado.”


O curioso é que o Vigário foi o padrinho, mas não poderia ser nomeado tutor conforme visto nas Ordenações Filipinas. 

Já as mulheres negras e pardas fossem livres, forras ou escravizadas, nem todas tinham a paternidade de seus filhos reconhecida. Vejamos dois casos:

Victorino, batizado em 09.09.1833, aos 02 meses, filho natural da “crioula” Maria, viúva, escrava de Antonio Batista de Carvalho. Padrinhos: José Antônio do Nascimento (pardo livre solteiro) e Anna Barbosa das Neves (parda livre solteira).

Francisco, batizado em 20.10.1833, aos 46 dias, filho natural de Anna Joaquina da Cruz, parda livre. Padrinho Silvestre Rodrigues de Carvalho (pardo “captivo”).

 Mas havia casos de casamentos entre mulheres negras livres (também pardas) com homens escravizados e também homens negros e pardos livres, já exposto nos outros artigos da série.

As mulheres brancas pobres, que eram a maioria, viviam menos uniões interraciais, diferentemente dos homens brancos pobres que se uniam a mulheres negras e pardas livres As famílias brancas casadas não apresentaram uniões interraciais. No caso das mulheres brancas pobres temos os seguintes dados sobre uniões interraciais, observando no entanto que essas uniões não ocorreram com homens negros livres ou escravizados, nem indígenas.

Menino filho de mãe branca e pai pardo livre: 01

Menina filha de mãe branca e pai pardo livre: 02

Menino filho de mãe branca e pai negro livre: 00

Menina filha de mãe branca e pai negro livre: 00

Menino filho de mãe branca e pai indígena: 00

Menina filha de mãe branca e pai indígena: 00


Citemos um dos casos:


Feliciana, batizada em 21.08.1833, aos 03 meses de idade, filha natural de Izabel Maria Francisca (branca) e Joaquim Mendes Joze dos Santos (pardo), tendo como padrinhos Manoel de Goes (pardo livre) e Eugenia das Neves (preta livre)


Infere-se que as mulheres brancas pobres não tinham tanto acesso a uniões interraciais, bem como as mulheres brancas casadas, haja vista que só se casavam com brancos. Os homens brancos pobres apresentam um outro padrão de relacionamento, podendo se relacionar tanto com mulheres brancas pobres, negras livres e pardas livres pobres. O fato de viverem em concubinato por si só não tirava dessas mulheres o direito de serem tutoras de seus filhos em caso de orfandade, bem como o fato de não terem a paternidade de seus filhos não reconhecida (pai incógnito). 

Também se verifica uma maior solidão das mulheres negras e pardas, fossem livres ou não, no exercício da maternidade, haja vista que com exceção de mulheres negras casadas, muitas não tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, embora houvesse muitas uniões entre homens brancos pobres e mulheres negras e pardas livres (com a respectiva filiação de seus filhos reconhecida), fazendo a cidade da Parahyba uma cidade miscigenada.

Fontes:

Livro de Registro de Batizados do ano de 1833 da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves da antiga cidade da Parahyba (atualmente João Pessoa);

GOUVEIA, Antônio de Souza. Direito dos Órphãos ou Apontamentos sobre o Processo Orphonológico. Parahyba: Typ. E Lith. a Vapôr Manoel Henriques, 1891

Ordenações Filipinas (1603), Livro IV, Título CII.

Aviso nº 312 de 20 de outubro de 1859https://www.ciespi.org.br/site/collections/document/2573