Dando prosseguimento à série sobre os Ingênuos e os Nascidos Escravizados na antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves no ano de 1833, hoje traremos informações jurídicas sobre o estado civil dos genitores das crianças que nasceram escravizadas.
No ano de 1833 foram batizadas 296 crianças e 1 mulher adulta escravizada. Desse número foram batizadas 27 crianças nascidas escravizadas, sendo as demais consideradas ingênuas, porque ao tempo do nascimento, mesmo no caso de crianças pretas e pardas, as mães não eram mulheres escravizadas ou porque eram brancas. No texto anterior da série analisamos o Princípio do Partus Sequitur Ventrem e pretendemos retornar a ele no próximo texto.
Antes de tratarmos dos vínculos pelo sacramento do matrimônio dos genitores de crianças nascidas escravizadas e batizadas no ano de 1833 na Freguesia de Nossa Senhora das Neves (Capital da Parahyba do Norte), tratemos de duas curiosidades: o apelido “Cabra”, e a quantidade de mulheres de origem africana que batizaram seus filhos. Assim temos o registro de batismo da párvula Lucinda em 06.04.1833:
"Lucinda. Filha natural de Joaquina Cabra (escravizada por Manoel Ramalho de Vasconcellos)"
A expressão "cabra", tão popular na Paraíba, refere-se à miscigenação de brancos e negros ou negros e indígenas, sendo de conotoção pejorativa naqueles tempos. Assim nos informa Rodrigues de Carvalho em sua obra Aspectos da Influência Africana na Formação Social do Brasil:
"De todo êsse pandemônio bestial abrolhou o delineamento racial que se desdobra no espécime primacial: "o cabra". "
Tudo indica que a escravizada Joana Cabra tivesse esse apelido por ser mestiça. Prosseguindo, temos as seguintes mulheres escravizadas de origem africana que constam na tabela já publicada:
1.21.06.1833. Maria, preta de nação. Mãe de João.
2.30.06.1833. Maria, preta de nação. Mãe de Joanna.
3. 11.09.1833. Domingas, preta de nação. Mãe de Roberto.
4. 22.09.1833. Anna, prera de nação. Mãe de Joze.
5. 29.09.1833. Luiza, preta de nação Mussandi. Mãe de Antônio.
6. 27.10.1833. Francisca, preta de nação. Mãe de Miguel.
Todas as mulheres escravizadas pretas de nação tiveram seus filhos "naturais" sem reconhecimento de paternidade, o que dá para suspeitar de possíveis abusos sexuais. Do total de 06 mulheres africanas, apenas 01 foi identificada a nação de origem Mussandi (etnia banto).
Prosseguimos agora com as 03 crianças escravizadas batizadas no ano de 1833 que são filhos legítimos, isto é, os pais eram casados pelo sacramento do matrimônio e não "emancebados", como se dizia na época:
1. 03.03.1833. Thimótheo. Filho legítimo de Vicente “Góvea” (?) e Lourença Maria (ambos escravizados)
2. 30.09.1833. Joze. Filho legítimo de Marcelino Correia e de Maria Luiza (ambos “crioulos captivos do Senhorio de Engenho Gargaú). Freguesia de Nossa Senhora do Livramento Santa Rita –PB, em virtude da licença do Rev. Vigário daquela freguesia Pe. Mathias Leal de Lemos)
3.13.10.1833.Vicente. Filho legítimo de Marcos do Rego e Luiza Antônia de Jesus (“crioulos” escravizados por Caetano Joze de Almeida)
Como era ministrado o sacramento do matrimônio para pessoas escravizadas? Quais foram a condição para que esses 03 casais de escravizados pudessem casar, lembrando que no tempo o casamento válido era o religioso (católico)?
No ano de 1833, no Brasil, as regras canônicas válidas estavam compiladas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707. Assim no seu Livro I, Título LXXI, art. 303 ^Do Matrimônio dos Escravos", dizia que pessoas "captivas" poderiam se casar com outras pessoas escravizadas ou livres, sem interferência, sem impedimento do seu "senhor", não podendo, inclusive, os cônjuges serem separados em caso de alienação.
Mas é no artigo 304 que vemos quais eram as exigências para que pessoas escravizadas pudessem contrair matrimônio, senão vejamos:
E prossegue o recorte:
Ou seja, a autorização para que pessoas escravizadas recebessem o sacramento do matrimônio era condicionada à prova de que os casais candidatos fossem convertidos à fé católica, haja vista que muitas pessoas escravizadas eram de origem muçulmana ou se dedicavam ao culto de Orixás, Inquinces, Voduncis, etc, dependendo da nação de origem. Deveriam provar que conheciam a Doutrina Cristã, ou pelo menos o Pai Nosso, a Ave Maria e o Credo. Por fim, deveriam provar que tinham conhecimento da finalidade do matrimônio enquanto sacramento. Para esse fim, eram realizadas diligências por religiosos para que fossem autorizadas as bodas.
Não nos esqueçamos, entretanto, que o número das chamadas atualmente uniões estáveis era altíssimo, já que a regra prática de pessoas pretas e pardas escravizadas ou livres e de brancos pobres era terem filhos "naturais".
Laura Berquó


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