PREZAD@S, SEGUE NA ÍNTEGRA A REPORTAGEM DA JORNALISTA AMANDA AUDI, DATADA DE 27.09.2018 DA INTERCEPT - BRASIL. TODAS AS FOTOS POSTADAS SÃO DA REPORTAGEM DA JORNALISTA AMANDA AUDI.
Mas, em Queimadas, onde a renda média mensal de um trabalhador é de
R$ 292,50, eu não conheci apenas Doda de Tião e sua família: acabei
encontrando um retrato de como acontece a política brasileira nos
rincões do país.
Eu e a fotógrafa Janine Moraes fomos recebidas por um assessor da
família, que fez questão de nos buscar no aeroporto da vizinha Campina
Grande. Provei o cérebro de bode naquele domingo em um calor de 30 graus
enquanto moscas pousavam nos pratos e senti gosto, inesperadamente, de
carne de panela. “Para comer bode vocês precisam beber cana”, me disse
Joventino, irmão de Doda, apoiado pelos demais. Uma vez em Queimadas, é
recomendável seguir as orientações da família. Bebemos a cachaça.
Da esquerda para a direita, Maria do
Socorro De Souza Rêgo Lucena, o deputado estadual Doda de Tião, Maria da
Paz de Souza Rêgo, e o prefeito Carlinhos de Tião.
Janine Moraes
40 anos de poder
Doda está concorrendo ao terceiro mandato como deputado estadual. Em
2010, quando se elegeu pela primeira vez, declarou patrimônio de apenas
R$ 10 mil, valor bizarramente atribuído a um avião que, nos anos
seguintes, desapareceu de suas declarações. Na eleição de 2014, informou
ter R$ 557,5 mil em terrenos, imóveis e contas bancárias. Já em 2018,
após dois mandatos na Assembleia Legislativa da Paraíba, disse ao TSE
possuir R$ 4,5 milhões – quase a metade em dinheiro vivo. Da primeira
eleição até agora, seu patrimônio declarado já cresceu 450 vezes.
O sucesso de Doda, na política e nos negócios, está intimamente ligado à sua família.
A história de como os Rêgo dominaram a região nos últimos 40 anos
combina os seguintes ingredientes: água, leite, emprego e dinheiro,
muito dinheiro. E um pouco de cocaína.
Na mesa, todos querem saber o que iremos publicar sobre a família. Não estão acostumados com repórteres.
No almoço em que foi servida a cabeça de bode, eu estava rodeada pelo
alto poder de Queimadas. À minha frente, sentava o prefeito José
Carlos, o Carlinhos de Tião, que está no segundo mandato. O secretário
de infraestrutura Joventino, que já foi prefeito de uma cidade próxima,
estava à minha esquerda. Ao lado dele, Maria do Socorro Rêgo, esposa do
presidente da Câmara Municipal e coordenadora da campanha pela reeleição
de Doda. Todos são irmãos e filhos de uma lenda local: Tião do Rêgo,
ex-prefeito e vereador da cidade, falecido em 2006. Por causa dele,
todos os Rêgo usam o sufixo “de Tião” como nome de guerra na política.
Todos queriam saber o que iríamos publicar sobre a família. Não estão
acostumados com repórteres. A cidade não tem jornais, e os funcionários
da rádio comunitária são aliados.
Água e leite
Em um café na casa de sua mãe, Doda me explicou que seu patrimônio
cresceu porque os negócios particulares prosperaram durante os seus
mandatos na Assembleia. Ele é dono de um supermercado e de uma fábrica
de postes e possui imóveis alugados e terrenos. Mas o negócio mais
tradicional da família é a distribuição de água.
Antigamente, boa parte da distribuição acontecia direto do açude da
família, hoje já quase seco. Atualmente, o abastecimento passou a ser
feito com caminhões pipa, e o serviço é coordenado pela prefeitura
comandada por Carlinhos de Tião – são os Rêgo que determinam quem vai
receber água no município, um dos mais secos do país, com índice
pluviométrico que não passa de 600 mm por ano (menos da metade do Rio de
Janeiro, por exemplo).
Doda é chamado de “o deputado das águas”.
A matriarca da família, Maria da Paz, a Dadá, tem um caderno em que
anota os nomes de quem pede visita do caminhão. Ela é conhecida como a
“vereadora das águas”, mesmo que jamais tenha ocupado cargo público.
Maria Da Paz De Sousa Rêgo, a Dona Dadá, matriarca da
família. Ela anota os nomes de quem pede a visita do caminhão pipa da
prefeitura, mesmo que não trabalhe lá.
Janine Moraes
Por causa do prestígio, os Rêgo apadrinham crianças de outras
famílias, um costume das oligarquias do interior do Nordeste. Eles são
“padrinhos” de mais de 2 mil crianças. Ao aceitarem um novo
afilhado, doam leite, um símbolo de riqueza. Ainda hoje, Dona Dadá
mantém garrafas pet com leite, ordenhadas in loco, para oferecer às
várias pessoas que passam por sua casa todos os dias pedindo ajuda.
A influência é tão presente que não é raro encontrar fotos do
patriarca Tião do Rêgo nas casas dos moradores da região, penduradas nas
paredes ou em cima de móveis, geralmente ao lado da do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, em sinal de fidelidade.
Maria do Socorro, irmã de Doda e sua coordenadora da campanha, me
contou que eles têm ainda outro privilégio: saber o resultado das urnas
antes do anúncio oficial. Queimadas tem cinco sessões eleitorais e os
fiscais de urna, ao fim da votação, logo depois que o resultado de cada
sessão é impresso e enviado para o TSE, “correm para a casa” dela. Os
votos dos relatórios dos pouco mais de 31 mil eleitores são então
contados manualmente pelos membros da família.
Do lombo de um jegue ao helicóptero
Os moradores de Queimadas contam que Tião, que viveu entre 1940 e
2006, era um sujeito simples e sem posses, que fazia campanha em cima de
um jegue. Os descendentes preferem outros veículos: carros 4×4 e um
helicóptero.
Na casa de Dona Dadá, retrato de seu falecido marido e
ex-prefeito do município de Queimadas, Tião do Rêgo, com adesivos de
membros da família que já disputaram eleições.
Janine Moraes
Em uma cidade na qual ao menos
um em cada cinco moradores depende do Bolsa Família,
os Rêgo são donos dos maiores empreendimentos locais, o que inclui
supermercados, pedreiras, lojas de material de construção, madeireira,
cartório, farmácia, padaria, casa de eventos, fábrica de postes,
terrenos e fazendas – na Paraíba e na Bahia.
Eles são os maiores empregadores da região: um batalhão de 2 mil
pessoas, de acordo com a família. O número é alto se considerarmos o
total da população com carteira assinada na cidade, segundo o IBGE, que
era de
3,3 mil pessoas em 2016.
Além da distribuição de empregos, os Rêgo também se valem da velha
tática da troca de favores. Quando circulam pela cidade, recebem uma
enxurrada de pedidos: vaga em hospital, emprego para um parente, o
pagamento de uma conta de luz, um dinheirinho. Também não há pudor deles
em fazer promessas, mesmo na nossa frente.
Eu testemunhei uma série de ligações em que Socorro atendia uma
mulher que se apresentava como Marica. Ela pedia uma vaga para o marido
em um hospital em Campina Grande. “Eu estou tentando, mas hospital
grande é mais difícil. Se fosse aqui a gente resolvia. Mas tenha
paciência que vamos dar um jeito”, disse a ela.
Doda também recebe pedidos. Ele diz que só vai ao seu supermercado de
manhã cedo ou no fim do expediente para evitar multidões. “Se eu
aparecer lá de tarde, aparecem 30 pessoas. O desemprego aqui é muito
grande, o povo é sofrido. O que tem de gente pedindo coisa… Eu gosto de
ajudar, mas tem horas que chega tanta gente que a gente não pode nem dar
aquela assistência ao coitado.”
O prefeito Carlinhos diz que é menos assistencialista do que o pai
costumava ser. “Quando ele era prefeito, não eram nem 5h da manhã e já
tinha 20, 30 pessoas no portão de casa pedindo água, leite… Pareciam
zumbis”, contou, sentado em uma cadeira de balanço na varanda da casa de
sua mãe. Pouco antes, um casal havia passado por nós e pedido emprego
para um terceiro.
Ele relata que atende pedidos quando a pessoa realmente precisa do
favor. “Mas eu faço do jeito certo, com registro na prefeitura da verba
para doação.”. Pergunto se o prefeito pode usar dinheiro do município
para interesses particulares. “Se for verba própria da prefeitura, de
impostos etc, pode”.
José Carlos de Sousa Rêgo, mais conhecido como Carlinhos de Tião, atual prefeito do Município de Queimadas, na Paraíba.
Janine Moraes
Conversei com Cláudio Henrique de Castro, analista de controle do
Tribunal de Contas do Paraná e especialista em direito administrativo e
eleitoral. Ele é categórico: isso é totalmente ilegal. “O prefeito está
cometendo um rosário de crimes”, disse.
Castro diz que só é possível distribuir recursos para caridade
em casos muito específicos, como quando um município passa por uma
situação de calamidade pública, por exemplo. Ainda assim, a doação
precisa ser aprovada pelo legislativo. “Como está sendo feito, estão
caracterizados crimes eleitoral, de improbidade administrativa e fiscal,
por distribuir recursos públicos para interesses particulares”, disse.
Como estamos em período eleitoral, diz Castro, Carlinhos pode até ser
afastado da prefeitura e Doda ter a campanha suspensa por ter sido
beneficiado pelos favores concedidos pelo irmão. Os dois ainda podem
ficar inelegíveis e serem obrigados a devolver o dinheiro.
Laranjas e Bolsa Família
Queimadas, segundo Carlinhos, foi batizada assim em função do clima
semiárido, onde o solo é seco e duro e as plantações sofrem. Ela é
conhecida como “cidade das pedras” pela formação rochosa da serra do
Bodopitá, com picos que passam de mil metros de altura. A região tem
pelo menos 12 sítios arqueológicos – mal-conservados e vandalizados.
Carlinhos nos contou essas informações enquanto dirigia a sua
caminhonete até o centro da cidade. Ele fechou a janela para deixar a
poeira do lado de fora e foi apontando na paisagem as propriedades da
família. São terrenos médios (“minifúndios”, como diz), que parecem
inutilizados. Ele buzina e cumprimenta todos que aparecem na estrada.
Seguimos com o prefeito até o Master, seu supermercado, o maior da
cidade, na avenida principal. Em um dos corredores, uma mulher lhe pede
R$ 100. Ele a orienta a procurar a assistência social da prefeitura e
dizer que ele a mandou.
A sala de Carlinhos, assim como as de Doda e Socorro em seus
respectivos negócios, ficam em um plano elevado e são envidraçadas, de
modo a permitir uma visão de cima – e também para serem vistos. O espaço
foi decorado com troféus de vaquejada e garrafas de bebida. A sala de
Socorro tem fotos do pai, seu ídolo. Já a de Doda, no supermercado, é
tratada como “gabinete”, onde
recebe aliados.
No mesmo terreno do Master, há uma unidade do Subway e uma loja de
artesanato, ambas de Carlinhos. Atravessando a rua, enxergo outro grande
supermercado, o Sacolão. Este é de Doda. Alguns metros adiante, fica a
loja de material de construção de Socorro.
Nenhum dos estabelecimentos, porém, está em nome dos verdadeiros donos.
Supermercado O Sacolão, no centro de Queimadas, do deputado estadual Doda de Tião (Paulo Rogério de Souza Rêgo).
Janine Moraes
Os bens foram distribuídos entre funcionários da prefeitura e outros membros da família. O Sacolão está
registrado no nome da esposa de Doda, Delúsia, e de uma
cozinheira que recebe R$ 954 por mês, além do Bolsa Família.
A loja de materiais de construção pertence
oficialmente ao filho de Socorro, Ricardo, e a um
vigia
que também recebe menos de R$ 1 mil por mês. No papel, o Master é da
mãe deles, Dadá, e do irmão mais velho, Roberto Carlos, que teve uma
doença quando criança e não atua nos negócios da família.
Justiça amiga
Carlinhos chegou a ser alvo de uma
ação
do Ministério Público Federal por usar como laranja uma mulher que não
sabia escrever o próprio nome. Segundo a denúncia, Luzinete Pereira de
Lima ficou sabendo na Caixa Econômica Federal que era uma das
proprietárias da Correl – Comercial Rego, que consta na Receita como uma
loja de alimentos em Campina Grande. Hoje a empresa está no nome de
Carlinhos.
O Tribunal de Contas da Paraíba recebeu, em 2012, uma
denúncia sobre o suposto uso de empresas fictícias da família em contratos da prefeitura na primeira gestão de Carlinhos como prefeito.
Os fiscais foram ao endereço das empresas contratadas para
abastecimento de água por carro pipa e coleta de lixo, que estavam
fechadas em horário comercial. Com o avanço da investigação, concluíram
que as firmas eram inexistentes, para “evidente lavagem de dinheiro”. O
Tribunal
condenou
o prefeito a pagar R$ 3,4 milhões e enviou as informações para o
Ministério Público e a Polícia Federal. Não há indicativo, porém, de que
as investigações tenham andado e tampouco há outras investigações na
delegacia e na promotoria de Queimadas.
Há 21 anos na cidade, o mais próximo que o promotor local, Marcio de
Albuquerque, chegou de incomodar os Rêgo – com quem mantém relações
cordiais – foi em um caso de homicídio. Em 2012, um colaborador da
campanha de Carlinhos, Sebastian Coutinho, teria sido morto como queima
de arquivo, de acordo com a mãe do rapaz. Ela entregou fotos de
Carlinhos junto com um dos suspeitos do crime mas, segundo o promotor,
elas não foram suficientes para provar a participação do político.
Cocaína e paranoia
O emaranhado de propriedades suspeitas é denunciado por dentro do
clã. José Ricardo Rêgo, conhecido como Preá, é irmão de Doda e
Carlinhos, mas brigou com a família no começo do ano e se aliou ao
opositor, o também candidato a deputado estadual Jacó Maciel, do Avante.
Viciado em cocaína (a que se refere como “vitamina do diabo”), Preá
foi internado à força pelos irmãos em 2015. Enquanto tomava remédios
pesados, diz que lhe forçaram a assinar uma procuração para passar os
negócios que administrava para o nome deles. O assunto é confirmado
pelos irmãos, que dizem que Preá não tinha condições de tocar os
empreendimentos.
Ele pediu licença, durante a entrevista, para cheirar cocaína do lado de fora da sala.
Na cidade, Preá já foi acusado de ser um traficante envolvido em
explosões de caixas eletrônicos – o que ele nega. Ele diz que a
desconfiança surgiu porque é dono de duas pedreiras e tem dinamite à
disposição. “Eu tenho a minha ética, não devo a ninguém”, afirma.
Para me encontrar com Preá, fui recebida por um carro novo, sem
placas, que estacionou em frente à promotoria. “Entrem no carro”, disse
um homem. Nós hesitamos. O homem insistiu: “Vocês não querem conhecer o
nosso amigo?”. O motorista e o outro homem que estava no banco do
passageiro eram aliados de Preá. Mais tarde compreendi que, mesmo sem
cargo público, o irmão tem o mesmo prestígio de Doda e Carlinhos na
cidade. As pessoas o procuram quando precisam de um médico, uma viagem
ou dinheiro.
Eles nos levaram até a pedreira Britamix, em Massaranduba, a cerca de
40 quilômetros de Queimadas. Preá estava com uma camisa laranja suja de
poeira com o logotipo da construtora Camargo Corrêa. Conversamos com
ele em sua sala, um contêiner improvisado de onde vê o trabalho na
pedreira. Várias vezes ele nos mostrou as mãos calejadas, justificando
que trabalha pesado. Ele pediu licença, durante a entrevista, para
cheirar cocaína do lado de fora da sala.
Preá vive com medo de sofrer uma emboscada armada pelos irmãos. Em
alguns momentos da conversa, fazia movimentos demonstrando que estava
armado. Quando falava sobre assuntos sensíveis, abaixava o tom de voz.
Achava que estava sendo grampeado.
Estupro e fidelidade
Em 2012, cinco mulheres foram estupradas na cidade, episódio que ficou conhecido nacionalmente como a
Barbárie de Queimadas.
Duas vítimas morreram. Um sobrinho dos Rêgo, filho fora do casamento de
Tião, participou do crime. Ele cumpre pena no regime semiaberto, em
João Pessoa. Doda paga o aluguel de um apartamento para ele passar o
dia.
Conversamos com Fátima Monteiro, a mãe de uma das meninas mortas. No
sofá de sua sala, ela nos mostrou um saco de fotos da filha. Chorou,
disse que engordou 30 quilos e passou cinco anos fora de casa por causa
do ocorrido – a casa onde mora fica a cerca de 200 metros do local do
estupro.
Dona Maria de Fátima Frazão, mãe de Izabella, morta no estupro coletivo que ocorreu em 2012, em Queimadas.
Janine Moraes
Fátima disse que sua família sempre foi próxima dos Tião e que, hoje,
vários parentes ocupam cargos na prefeitura. “A gente tem que saber
separar as coisas, eles não tiveram culpa. Foi muito sofrido. Mas eles
nos ajudaram com trabalho e médico”, disse.
Outros moradores relataram situações parecidas. Boa parte tem
negócios com a família, receberam emprego ou são afilhados e aprovam a
gestão dos Rêgo.
Fogos de artifício e vaquejada
Participei de um comício de Doda, em Barracão, uma comunidade rural
perto de Queimadas. O show tinha telão, chuva de papel picado e explosão
de fogos de artifício. Caixas de som bombavam o
hit
da campanha: “Doda, Doda… É Doda na cabeça”. Um homem se animou e
começou a dançar com uma latinha de bebida na mão. Foi retirado por um
dos seguranças que guardavam o local.
Um dos funcionários da rádio comunitária, Josias, era o responsável
por trazer público para os comícios. Ele disse que enviava ônibus para
buscar eleitores em regiões mais afastadas da área rural. Perguntei se
só com isso o povo se animava a ir a um comício numa noite de sábado.
Ele respondeu, rindo, que tinha mais um “incentivo”. Perguntei qual. Ele
respondeu com gestos que não entendi. Insisti na pergunta. “Um
incentivo, um refrigerante, um lanche, sabe?”, disse.
As pessoas recebiam adesivos com o rosto e o número de urna de Doda
assim que chegavam. Ambulantes com luzes neon vendiam cerveja,
energético e “capeta” (um tipo de batida). A maioria dos homens já
estava embriagada quando o deputado finalmente chegou, perto das 22h.
Eles estavam lá desde as 19h.
O espaço estava lotado com apoiadores vestidos de vermelho, a cor que
identifica o grupo político dos “Tião”. Os adversários são amarelos, e o
embate entre as cores é a tônica da disputa eleitoral há décadas,
independente das tonalidades dos partidos envolvidos.
Quem me explicou isso foi Arnaldo Dias, dono da agência de
publicidade responsável pelo material de campanha e pela propaganda dos
negócios da família há 10 anos. Foi ele quem me buscou no aeroporto de
Campina Grande, apesar de minha resistência em aceitar o favor. Disse
que, além de publicitário, era também o “faz-tudo” dos Rêgo.
A agência de Arnaldo edita uma revista temática sobre vaquejada, uma
tradição nordestina que consiste em vaqueiros montados a cavalo tentando
encurralar e derrubar um boi, laçando-o pelo rabo. A prática chegou a
ser considerada
ilegal por imputar sofrimento aos animais.
A vaquejada é a principal bandeira do mandato de Doda. Ele foi
autor de um projeto que regulamenta a prática na Paraíba. O deputado não é praticante, mas o irmão, Carlinhos, sim.
Coronéis do carro pipa
A operação da família é muito semelhante aos moldes do coronelismo,
comum no Nordeste no início do século 20, mas adaptado a uma nova
versão. Antigamente, o coronel exercia poder em uma localidade por meio
da troca de favores, concedidos apenas a quem lhe fosse fiel. As
principais moedas de troca eram, como no caso dos Tião, a água, o leite e
o apadrinhamento.
“Era de costume as pessoas carentes e os mais necessitados atribuírem
seus filhos a uma dessas famílias tradicionais, visto que além da
‘proteção’ e ‘segurança’, o leite já estava garantido para a criança”,
escreveu José Marciano Monteiro em sua
dissertação de mestrado, de 2009, sobre o poder da família Ernesto-Rêgo em Queimadas.
‘Antes
o coronel determinava quem ia receber água de seu açude. Agora, os
vereadores controlam a distribuição por meio de carros pipa.’
Hoje professor da Universidade Federal de Campina Grande, Monteiro
continuou o estudo no doutorado. No livro “A política como negócio de
família”, traçou a árvore genealógica dos ‘Tião’ e encontrou semelhanças
no modo de agir deles e de outras famílias poderosas do interior do
país.
Estabeleceu um paralelo: o poder das famílias se retroalimenta. Elas
são donas do poder poder político de um local e com isso saem na frente
para conquistar o poder econômico. E vice-versa. A lógica é igual à da
bolacha
Tostines: não se sabe se o poder econômico garante o sucesso nas urnas ou se o sucesso nas urnas é que faz os negócios crescerem.
“São verdadeiras dinastias políticas que se revezam no poder e
dominam o Estado, recortando o território por meio de ‘nomes de
família'”, escreveu. A renovação na política nestes locais, segundo
Monteiro, é apenas geracional.
A diferença entre as situações encontradas hoje e o coronelismo no
passado é que o poder agora, ao menos aparentemente, precisa passar por
outra instâncias. “Antes o coronel determinava quem ia receber água de
seu açude. Agora, os vereadores controlam a distribuição por meio de
carros pipa”, citou como exemplo.
‘Pobres, graças a Deus’
Tião do Rêgo era descendente de uma família tradicional da região do
agreste pernambucano e paraibano. Sua linhagem é a mesma que deu origem a
uma série de conhecidos da política brasileira, como o ex-deputado
Vital do Rêgo e o filho de mesmo nome, ministro do Tribunal de Contas da
União, e o deputado federal e atual candidato a senador Veneziano
Vital, do PSB.
Na casa de Dona Dadá, Maria do Socorro de Souza Lucena, prega mais um adesivo de um candidato da família no espelho.
Janine Moraes
O pai, contam os irmãos, não se importava com dinheiro e deixava a
família passar necessidade. Todos trabalharam desde a infância, vendendo
peixe, leite e fazendo pequenos serviços (Doda já levou uma
repreensão pública por elogiar uma criança em condição de trabalho infantil).
“O pai não olhava para a família. Mas ele é o nosso orgulho”, diz
Socorro, que aos 13 anos trabalhou como manicure enquanto o pai era
prefeito. Seu escritório é lotado de pôsteres e fotos de Tião. Quem
entra logo vê um grande busto de bronze do pai, feito em Campina Grande.
“Fomos pobres, graças a Deus. Por isso hoje somos viciados em
trabalho”, continua Socorro. O “vício em trabalho” é o bordão repetido
por todos os filhos. À exceção de Carlinhos, que é filiado ao PSB, os
outros são do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro, assim como o pai.
Doda diz que esta deve ser a sua última eleição, pois quer se
aposentar. Ele tem 51 anos. “Eu estou deixando de viver por causa da
política. Tenho um apartamento em João Pessoa e não vou pra praia há
mais de um ano.”
O deputado também acredita que o sucesso da família com os negócios
foi o motivo de Tião ter perdido pela primeira vez uma eleição (a última
de sua vida), para vereador. “Quando a gente começou a ter as coisas,
as pessoas não aceitavam mais que se negasse algum pedido”, disse.
Tião proibia os filhos de entrarem na política – achava que eles não
aguentariam o tranco. Em 2008, dois anos depois de sua morte, vítima de
um câncer de pulmão aos 66 anos, Carlinhos se elegeu prefeito. Precisava
continuar o legado do pai.
Socorro diz que os filhos Mariana e Ricardo também querem entrar para
a política. “Tento falar para eles desistirem dessa ideia, mas acho que
não vai ter jeito”, disse, desanimada. Têm tudo para dar certo.
*Chegamos ao nome de Doda de Tião por meio de um levantamento
feito a pedido do Intercept na base de dados do Tribunal Superior
Eleitoral pela Open Knowledge, organização sem fins lucrativos que
construiu a plataforma Perfil Político.
Foram considerados políticos de cidades de até 100 mil habitantes
eleitos em 2014 e que assumiram em janeiro de 2015 cujo patrimônio era superior à média geral dos candidatos declararam ao TSE, que foi de R$ 388.826,86 em 2014.
Foto em destaque: Deputado estadual pelo PTB, Doda de Tião, em Queimadas."
OBS.: Vetados comentários devido a legislação eleitoral.