Dom Aldo revela esquema de desvio de dinheiro na
Igreja; 'Fui obrigado pelo Vaticano a renunciar'
10/07/2016 | 16h55min
Na última quarta-feira, o Vaticano anunciou que o
papa Francisco aceitou a renúncia do arcebispo da Paraíba, dom Aldo di
Cillo Pagotto. Oficialmente, dom Aldo deixou o posto por “motivos de saúde”.
Mas só oficialmente. Por trás da decisão, há muito mais. Há pelo menos quatro anos,
o arcebispo era investigado pelo próprio Vaticano sob suspeita de acobertar
padres pedófilos. Dom Aldo também era acusado de promover orgias e de ter
mantido relacionamento com um jovem de 18 anos – o que ele nega. Foi o primeiro
caso, no Brasil, de um arcebispo que deixa o posto no curso de uma investigação
sobre envolvimento em escândalos sexuais.
Na mesma quarta-feira, dom Aldo falou por quase
duas horas a VEJA. O resultado da conversa é revelador dos bastidores da Igreja
– e de segredos que, na grande maioria das vezes, graças à hierarquia e à
disciplina dos religiosos, são mantidos distantes dos olhos e ouvidos do
distinto público. Na entrevista, o bispo deixa evidente que, na verdade, foi
obrigado a renunciar. Ele conta que, no início de junho, foi chamado a Brasília
para uma conversa com o núncio apostólico, o representante do papa no Brasil. E
que, naquele mesmo dia, o núncio — em nome do papa — o fez redigir a carta de
renúncia.
O
arcebispo se diz alvo de uma grande injustiça cometida pelo papado de Francisco
e atribui a sua situação a uma disputa que tem como pano de fundo acusações de
corrupção, homossexualismo, pedofilia e, quase sempre, disputa por poder.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Entrevista – dom Aldo di Cillo
Pagotto
- Desvio de dinheiro
Dom Aldo diz que foi vítima de
uma orquestração maquinada por um grupo de padres que se opunham a medidas que
ele adotou desde que assumiu a Arquidiocese da Paraíba. Ao falar desses padres,
cujos nomes ele se esforça para não revelar, o religioso escancara o ambiente
interno conflagrado no clero – algo que a Igreja, quase sempre, consegue manter
em segredo. Ele acusa os adversários de estarem envolvidos em desvios de
dinheiro e de serem, eles próprios, personagens de escândalos sexuais. Na
origem de tudo, diz ele, está a disputa pelo controle das finanças.
“Tudo começou porque eu tenho uma
visão mais moderna. A questão administrativa e patrimonial da Arquidiocese
estava bastante comprometida. Então começamos a colocar as coisas em ordem, com
prestação de contas. Isso mexeu na posição de uns privilegiados. Havia coisas
não muito bem resolvidas.”
“Quando você mexe no bolso, que é
a parte mais delicada do corpo da pessoa, vêm as reações, que não são tão
diretas no começo. Aí começam com outras acusações. Diziam que eu era
financista, materialista, e que a Igreja não é só isso.”
“Essa reação partia de um grupo
pequeno, mas muito bem articulado, formado por cinco padres. Passaram a acusar
que o clero no estado estaria dividido, e outras coisas morais. Diziam que eu
era ditador. Depois foram para os ataques pessoais de ordem afetiva e sexual.
Aí foram para a baixaria mesmo, com acusações horrendas à minha pessoa e a
outros padres também.”
“Esses padres têm poder
financeiro. E a reação vinha justamente daí. Tudo parte de quando você quer
mexer nas finanças.”
Mas esses padres estavam
envolvidos com corrupção?, perguntou VEJA.
A resposta: “Havia um colégio
aqui, o Pio XII, que eu tive que fechar quando cheguei porque havia uma coisa
não resolvida ali. Era um colégio tradicional, de mais de 80 anos. Pedimos uma
auditoria e fizeram de tudo para não fazer essa auditoria. Sempre me era aconselhado:
‘Não é bom mexer com isso’”.
Dom Aldo diz que, só nas contas
da escola, havia um rombo de 1,8 milhão de reais. E quem são esses padres?
“Eu sei quem são. Alguns nomes eu
levei para a Santa Sé. Pelo menos o nome de dois, entre eles o que capitaneia,
eu informei à Santa Sé. São padres muito bem posicionados aqui, veteranos.”
O segredo
do processo e o silêncio do papa
Alvo de denúncias cada vez mais
constantes, e de uma série de dossiês enviados a Roma, dom Aldo Pagotto passou
a ser formalmente investigado pelo Vaticano. O rol de acusações contra ele era
extenso: além de ser acusado de proteger padres pedófilos, diziam as denúncias,
teria relaxado os critérios para a aceitação de novos seminaristas. Além disso,
era apontado como personagem central de um grupo de religiosos que se
esbaldavam em festas e promoviam orgias sexuais. Em janeiro de 2015, já em
consequência das investigações, o Vaticano impediu o arcebispo de ordenar novos
padres.
“Em junho do ano passado fui ao
Vaticano tirar a história limpo. Falei com o cardeal Stella (Beniamino Stella,
prefeito da Congregação para o Clero — uma espécie de ministro do Vaticano). O
cardeal me tratou muito bem, me escutou durante uma hora, mas disse que a
resposta viria só depois de agosto e setembro e que o desfecho dependia também
da Congregação para os Bispos. Comecei a cobrar e não vinha nada.”
“Em maio eu pedi para conversar
com o próprio papa. Mas isso não me foi concedido. Essa resposta nem veio. Dois
ou três dias depois de redigir a carta de renúncia, fiz outra carta ao papa
reforçando esse pedido. Escrevi ao papa dizendo que gostaria muito de falar com
ele. Ali eu ainda tinha esperança (de que a investigação pudesse ter outro desfecho).
Nada.”
O chamado
para renunciar
Dom Aldo revela que a renúncia
não foi um ato de vontade própria. Foi uma determinação do Vaticano – uma
determinação que a disciplina religiosa e o respeito à hierarquia da Igreja o
obrigavam a aceitar. A renúncia era uma forma de evitar mais desgastes. A
explicação oficial que viria na sequência – “motivos de saúde”— ajudaria
“Fiquei lá (na Nunciatura
Apostólica, em Brasília) uma manhã inteira. A conversa com o núncio foi de pelo
menos uma hora. A sós, no gabinete dele. Ele recordou todos os fatos. Eu pedi,
de novo, para ter acesso ao que eu era acusado, ao relatório ou ao dossiê. Ele
disse: não se pode mostrar. Então, se é assim… Ele também não disse quem
acusava. Ele aconselha. Eu também tirei minhas dúvidas. Ele disse: ‘O papa está
muito preocupado com você. É para o seu bem. Para o seu bem e para o bem da
Igreja. Então, para o bem da Igreja e para o seu bem, você pense’. Eu cheguei a
dizer: está bem, está muito certo, entendi tudo. Eu mesmo me choquei.”
“Ele me falou: ‘Olha, você faça
essa carta’. É assim mesmo. Ele é o representante do papa.”
A certa altura, o arcebispo
percebe que estava falando demais. E tenta se corrigir:
O senhor, então foi instado a
renunciar?
“Não é bem assim…. Eu me
aconselhei também. E eu aqui já dizia para alguns padres da minha insatisfação,
do meu estado de saúde. Não é que recebi uma ordem: faça. Não é bem assim. A
gente é livre. Eu disse a ele (ao núncio): é até interessante que eu faça (a
carta), e fiz.”
O senhor acha justo o desfecho do
caso?
“Não acho. Eu tenho muita dificuldade
de aceitar uma coisa dessas. É muito ruim, muito ruim.”
‘Tive que
limpar o seminário’
Dom Aldo Pagotto admite que havia
“problemas” na Arquidiocese. Entre eles problemas, ele cita o fato de ter
aceitado, como candidatos a padre, jovens homossexuais que já haviam sido
rejeitados em outros seminários por “conduta inadequada”. Ele diz, porém, que
fez o que tinha de ser feito: “limpou” o seminário.
“Nós tivemos problemas no
seminário. Eu tive que limpar o seminário de pessoas suspeitas de comportamento
não adequado.”
Em que sentido? Sexual?
“É, exatamente.”
E o que é “limpar”?
“Limpar quer dizer convidar a
sair. Isso foi em 2012. Em um seminário sempre há entrada e saída de pessoas.
Seminário onde só entram pessoas e ninguém sai não é bom. Tem pessoas com
determinada tendência que vêm procurar seminário e você sabe que a intenção
pode ser outra. Eu não posso ser julgado por isso. Na verdade, os papas todos
tiveram problemas assim. O João Paulo teve problemas imensos. Depois veio Bento
16, que estatuiu normas muito caridosas, mas muito objetivas. E, agora,
Francisco da mesa forma. No caso daqui, houve problemas, eu não posso negar.
Mas eu fiz relatórios disso, desde o outro núncio apostólico, como estava o
seminário, que tinha havido infiltração (de gays). Eu relatei a infiltração.
Não escondi.”
A
“infiltração” gay
“No seminário, o problema era
homossexualismo. Falando abertamente, é isso. Tivemos alguns casos. O relato é
de que houve infiltração, romance, defesa de comportamentos que não são
admitidos pela Igreja. Naquele momento, entre 2011 e 2012, isso envolveu cinco
ou seis pessoas. Faziam defesa desse comportamento lá dentro. Também havia
comportamentos estranhos. Colegas estranharam, pessoas da comunidade também.
Diziam: ‘Olha, esse rapaz aqui parece que é…’. Havia toda uma preocupação para
evitar a reprodução desses escândalos que estamos vendo.”
Pedofilia
na Arquidiocese
“Eu digo que por misericórdia eu
aceitei alguns padres em crise. Aceitei seminaristas egressos (que já haviam
sido expulsos de outros seminários), mas eu não sabia desse comportamento. Por
indicação de alguém, por pedidos para que eu desse chance. Esses pedidos vinham
de bispos, de superiores de alguma congregação. Enfim, eu fui misericordioso.
Aceitei e me dei mal. Esses seminaristas foram ordenados por mim e depois tive
que afastá-los. Eu afastei seis. Eram acusados de envolvimento de pedofilia. Um
foi inocentado.”
“Era aquela questão com meninos,
coroinhas. Dentro da igreja. Eram casos na região metropolitana de João Pessoa
e no interior. Do interior eram três, e três da capital. As denúncias foram
feitas por familiares dos meninos. Comecei a receber essas denúncias de 2012
para 2013, tudo de uma vez, uma atrás da outra. Os padres foram afastados
imediatamente. Um deles morreu. Nunca foi ouvido em juízo e morreu de muita
depressão, coitadinho.”
A
acusação de relacionamento homossexual
“Deus me livre, isso não existe.
É mentira. Não tem como.”
E com base em que o acusam de ser
homossexual?
“Respondo com uma frase:
‘Acusemo-lo daquilo que nós somos’.”
Isso existe entre os religiosos
que o acusam?
“Claro que existe. Acuse-o
daquilo que a gente é.”
A
acusação de organizar festas e orgias
“Mas que festas? Deus me livre,
eu não tenho tempo para pecar. A minha única diversão é nadar na piscina de um
colégio aqui perto. Não vou ao cinema. Minha vida é trabalho. Não existe isso
aí.”
Veja
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