Criança indígena. Foto reproduzida da Internet |
"Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: I - estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação
(...)
Art. 54. Os índios têm direito aos meios de proteção à saúde facultados à comunhão nacional.
Parágrafo único. Na infância, na maternidade, na doença e na velhice, deve ser assegurada ao silvícola, especial assistência dos poderes públicos, em estabelecimentos a esse fim destinados.
(...)
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte."
EIS O TEXTO ORIGINAL DO PROJETO DA LEI MUWAJI:
PROJETO DE LEI Nº ____ 2007
(Do Sr. Henrique Afonso)
Dispõe sobre o combate a práticas tradicionais
nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de
crianças indígenas, bem como pertencentes a outras
sociedades ditas não tradicionais.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º. Reafirma-se o respeito e o fomento a práticas
tradicionais indígenas e de outras sociedades ditas não tradicionais, sempre que as
mesmas estejam em conformidade com os direitos humanos fundamentais,
estabelecidos na Constituição Federal e internacionalmente reconhecidos.
Art. 2º. Para fins desta lei, consideram-se nocivas as
práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais
como
I. homicídios de recém-nascidos, em casos de falta de um dos genitores;
II. homicídios de recém-nascidos, em casos de gestação múltipla;
III. homicídios de recém-nascidos, quando estes são portadores de deficiências
físicas e/ou mentais;
IV. homicídios de recém-nascidos, quando há preferência de gênero;
V. homicídios de recém-nascidos, quando houver breve espaço de tempo entre
uma gestação anterior e o nascimento em questão;
VI. homicídios de recém-nascidos, em casos de exceder o número de filhos
considerado apropriado para o grupo;
VII. homicídios de recém-nascidos, quando estes possuírem algum sinal ou
marca de nascença que os diferencie dos demais;
VIII. homicídios de recém-nascidos, quando estes são considerados
portadores de má-sorte para a família ou para o grupo;
IX. homicídios de crianças, em caso de crença de que a criança desnutrida é
fruto
X. de maldição, ou por qualquer outra crença que leve ao óbito intencional por
desnutrição;
XI. Abuso sexual, em quaisquer condições e justificativas;
XII. Maus-tratos, quando se verificam problemas de desenvolvimento físico
e/ou psíquico na criança.
XIII. Todas as outras agressões à integridade físico-psíquica de crianças e seus
genitores, em razão de quaisquer manifestações culturais e tradicionais,
culposa ou dolosamente, que configurem violações aos direitos humanos
reconhecidos pela legislação nacional e internacional.
Art. 3º. Qualquer pessoa que tenha conhecimento de casos
em que haja suspeita ou confirmação de gravidez considerada de risco (tais como os
itens mencionados no artigo 2º), de crianças correndo risco de morte, seja por
envenenamento, soterramento, desnutrição, maus-tratos ou qualquer outra forma,
serão obrigatoriamente comunicados, preferencialmente por escrito, por outras
formas (rádio, fax, telex, telégrafo, correio eletrônico, entre outras) ou pessoalmente,
à FUNASA, à FUNAI, ao Conselho Tutelar da respectiva localidade ou, na falta
deste, à autoridade judiciária e policial, sem prejuízo de outras providências legais.
Art. 4º. É dever de todos que tenham conhecimento das
situações de risco, em função de tradições nocivas, notificar imediatamente as
autoridades acima mencionadas, sob pena de responsabilização por crime de omissão
de socorro, em conformidade com a lei penal vigente, a qual estabelece, em caso de
descumprimento:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Art. 5º. As autoridades descritas no art. 3º respondem,
igualmente, por crime de omissão de socorro, quando não adotem, de maneira
imediata, as medidas cabíveis.
Art. 6º. Constatada a disposição dos genitores ou do grupo
em persistirem na prática tradicional nociva, é dever das autoridades judiciais
competentes promover a retirada provisória da criança e/ou dos seus genitores do
convívio do respectivo grupo e determinar a sua colocação em abrigos mantidos por
entidades governamentais e não governamentais, devidamente registradas nos
Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente. É, outrossim, dever
das mesmas autoridades gestionar, no sentido de demovê-los, sempre por meio do
diálogo, da persistência nas citadas práticas, até o esgotamento de todas as
possibilidades ao seu alcance.
Parágrafo único. Frustradas as gestões acima, deverá a
criança ser encaminhada às autoridades judiciárias competentes para fins de inclusão
no programa de adoção, como medida de preservar seu direito fundamental à vida e à
integridade físico-psíquica.
Art. 7º. Serão adotadas medidas para a erradicação das
práticas tradicionais nocivas, sempre por meio da educação e do diálogo em direitos
humanos, tanto em meio às sociedades em que existem tais práticas, como entre os
agentes públicos e profissionais que atuam nestas sociedades. Os órgãos
governamentais competentes poderão contar com o apoio da sociedade civil neste
intuito.
Art. 8º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
J U S T I F I C A Ç Ã O
A presente proposição visa cumprir o disposto no Decreto
99.710, de 21 de novembro de 1990, que promulga a Convenção sobre os direitos da
criança, a qual, além de reconhecer o direito à vida como inerente a toda criança (art.
6º), afirma a prevalência do direito à saúde da criança no conflito com as práticas
tradicionais e a obrigação de que os Estados-partes repudiem tais práticas, ao dispor,
em seu artigo 24, nº 3, o seguinte:
“Os Estados-partes adotarão todas as medidas
eficazes e adequadas para abolir práticas
tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da
criança”.
Também visa cumprir recomendação da Assembléia Geral
das Nações Unidas para o combate a práticas tradicionais nocivas, como estabelecido
na Resolução A/RES/56/128, de 2002, a qual faz um chamamento a todos os Estados
para que:
“Formulem, aprovem e apliquem leis, políticas,
planos e programas nacionais que proíbam as
práticas tradicionais ou consuetudinárias que
afetem a saúde da mulher e da menina, incluída a
mutilação genital feminina, e processem quem as
perpetrem”.
Cabe pontuar que a menção à mutilação genital feminina é
meramente exemplificativa, como uma das práticas tradicionais nocivas que têm sido
combatidas, pelo fato de afetar a saúde da mulher e da menina. Não há, entretanto,
registros desta prática consuetudinária no Brasil.
A Resolução A/S-27/19, também da Assembléia Geral da
ONU, chamada de “Um mundo para as crianças”, estabelece como primeiro
princípio:
Colocar as crianças em primeiro lugar. Em todas as
medidas relativas à infância será dada prioridade
aos melhores interesses da criança.
Destaca-se que a expressão “melhor interesse da criança”,
presente na legislação nacional e internacional é, hoje, um princípio em nosso
ordenamento jurídico e, mesmo sendo passível de relativização no caso concreto,
existe um norte a seguir, um mínimo que deve ser respeitado na aplicação do mesmo:
os direitos fundamentais da criança.
E como estratégia para proteger as crianças de todas as
formas de maus-tratos, abandono, exploração e violência, dispõe a Resolução A/S-
27/19, no ítem 44:
“Dar fim às práticas tradicionais e comuns
prejudiciais, tais como o matrimônio forçado e com
pouca idade e a mutilação genital feminina, que
transgridam os direitos das crianças e das
mulheres”.
Urge destacar que todas as crianças encontram-se sob a
proteção da própria Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 227, garante o
direito à vida e à saúde a todas as crianças. A mesma proteção é garantida pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual, em seu art. 7º, estabelece que a criança
tem direito a proteção à vida e à saúde.
Também o Código Civil determina, em seu art. 1º, que toda
pessoa (incluindo, obviamente, as crianças) é capaz de direitos e deveres na ordem
civil e, em seu art. 2º, que o começo da personalidade civil se dá com o nascimento
com vida (deixando claro que os neonatos já são titulares de personalidade civil).
Demonstra-se, portanto, que os diplomas legais acima
referidos garantem o direito à vida como o direito por excelência. Desta maneira, o
Estado brasileiro deve atuar no sentido de amparar todas as crianças,
independentemente de suas origens, gênero, etnia ou idade, como sujeitos de direitos
humanos que são. Obviamente, as tradições são reconhecidas, mas não estão
legitimadas a justificar violações a direitos humanos, como dispõe o art. 8, nº 2, do
Decreto 5.051/2004, o qual promulga a Convenção 169 da OIT.
Desta maneira, não se pode admitir uma interpretação
desvinculada de todo o ordenamento jurídico do art. 231 da Constituição, o qual
reconhece os costumes e tradições aos indígenas. É necessário que este artigo seja
interpretado à luz de todos os demais artigos mencionados acima, bem como o art. 5º
sobre os direitos fundamentais da Constituição, o qual norteia todo o ordenamento
jurídico nacional.
É importante destacar um trecho do estudo intitulado
“Assegurar os direitos das crianças indígenas”, realizado pelo Instituto de Pesquisas
Innocenti, da UNICEF, que diz o seguinte:
“Por outro lado, as reivindicações de grupo que
pretendem conservar práticas tradicionais que pelos
demais são consideradas prejudiciais para a
dignidade, a saúde e o desenvolvimento do menino
ou da menina (este seria o caso, por exemplo, da
mutilação genital feminina, do matrimônio não
consensual ou de castigos desumanos ou
degradantes infligidos sob pretexto de
comportamentos anti-sociais) transgridem os
direitos do indivíduo e, portanto, a comunidade não
pode legitimá-los como se se tratasse de um de seus
direitos. Um dos princípios-chave que tem vigência
no direito internacional estabelece que o indivíduo
debe receber o mais alto nível possível de proteção e
que, no caso de crianças, “o interesse superior da
criança” (artigo 3º da Convenção sobre os direitos
da criança) não pode ser desatendido ou violado
para salvaguardar o interesse superior do grupo”.
É importante destacar que a cultura é dinâmica e não
imutável. A cultura não é o bem maior a ser tutelado, mas sim o ser humano, no
intento de lhe propiciar o bem-estar e minimizar seu sofrimento. Os direitos humanos
perdem, completamente, o seu sentido de existir, se o ser humano for retirado do
centro do discurso e da práxis. Portanto, a tolerância (no sentido de aceitação,
reconhecimento da legitimidade) em relação à diversidade cultural deve ser norteada
pelo respeito aos direitos humanos.
Desta forma, entende-se que práticas tradicionais nocivas,
as quais se encontram presentes em diversos grupos sociais e étnicos do nosso país,
não podem ser ignoradas por esta casa e, portanto, merecem enfrentamento, por mais
delicadas que sejam.
Sabe-se que, por razões culturais, existe a prática de
homicídio de recém-nascidos, o abuso sexual de crianças (tanto por parte de seus
genitores, quanto por parte de estranhos), a desnutrição intencional, entre outras
violações a direitos humanos fundamentais. Destaca-se que tais práticas não se
circunscrevem a sociedades indígenas, mas também a outras sociedades ditas não
tradicionais.
Há que ressaltar, também, o sofrimento por parte dos
genitores que, muitas vezes, não desejam perpetrar tais práticas, mas acabam
obrigados a se submeterem a decisões do grupo, tendo, assim, seus próprios direitos
humanos violados (como, por exemplo, sua integridade psíquica).
Quando a família ou o grupo não deseja rejeitar a criança,
mas sim buscar alternativas, a atuação do governo deve guiar-se pelo princípio
fundamental de respeito à vida e à dignidade humana, os quais permeiam todo o
ordenamento jurídico brasileiro e dar a assistência necessária para que a família ou o
grupo possam continuar com a criança.
Porém, se um grupo, depois de conhecer os meios de evitar
as práticas tradicionais nocivas, não demonstrar vontade de proteger suas crianças,
entende-se que a criança deveria ser encaminhada, provisoriamente, a instituições de
apoio, governamentais ou não, na tentativa de ainda conseguir a aceitação da família
ou do grupo. Se esta tentativa for frustrada, então a alternativa da adoção poderia ser
adequada, pois garante o direito à vida que a criança possui. É imprescindível
destacar que este processo todo deve ser realizado, em todos os momentos, com base
no diálogo.
Preocupada com a postura dos órgãos governamentais de
não interferir em práticas tradicionais que se choquem com os direitos humanos
fundamentais, postura esta embasada no relativismo radical e demonstradamente
contrária ao ordenamento jurídico brasileiro e à legislação internacional, a
organização não-governamental ATINI – Voz pela Vida, que defende o direito
humano universal e inato à vida, reconhecido a todas as crianças, empenha-se no
enfrentamento e debate sobre as práticas tradicionais que colidem com os direitos
humanos fundamentais.
De acordo com pesquisas realizadas pela ATINI, existem poucos
dados oficiais a respeito do coeficiente de mortalidade infantil em razão de práticas
tradicionais. Segundo dados da FUNASA, entre a etnia Yanomami, o número de
homicídios elevou o coeficiente de mortalidade infantil de 39,56 para 121, no ano de
2003. Ao todo, foram 68 crianças vítimas de homicídio, naquele ano.1
No ano
seguinte, 2004, foram 98 as crianças vítimas de homicídio (erroneamente divulgado
como infanticídio).2
Também foi divulgado pela mídia um caso de gravidez de
uma criança de 9 anos, da etnia Apurinã, com suspeita de que haja sido por estupro.3
Fica clara a urgência de providências que este assunto
demanda, visto que inúmeras crianças, as quais devem ter seus direitos e interesses
postos em primeiro lugar, têm sido vítimas silenciosas de práticas tradicionais
nocivas e sem que haja providências suficientes para cessar estas violações à sua
dignidade e a seus direitos fundamentais mais básicos, dos quais elas são
indiscutivelmente titulares.
Objetivando tornar realidade os propósitos da ATINI – Voz
pela Vida, manifestados nesta justificação, venho assumir a tarefa de apresentar esta
proposta de Projeto de Lei.
1
COMISSÃO PRÓ-YANOMAMI. Yanomami na Imprensa. Conselho Yanomami se reúne para aprovar Plano
Distrital de Saúde. Fonte: Brasil Norte, 26 de maio de 2004. Disponível em:
, acesso em 02.01.2006.
2
COMISSÃO PRÓ-YANOMAMI. Yanomami na Imprensa. Parabólicas. Fonte: Folha de Boa Vista, 11 de março
de 2005. Disponível em: , acesso em
20.03.2006.
3
Disponível em:http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI949683-EI306,00.html
Dada a importância do tema conto com o apoio dos nobres parlamentares para a
provação do presente Porejto de Lei.
Sala das Sessões, maio de 2007.
Deputado HENRIQUE AFONSO
(PT/AC)
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