segunda-feira, 30 de junho de 2025

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS IV CARTA 4.2

 




"e ia ser provado que não existiu agressão com a mesma mais 20 detentas presenciol a cena em seguida ela saiu com à apenada e em menos de 3 horas ela voltou ao presidio  com um exame mostrando que não existiu agressão com a mesma. No mesmo dia as 6 horas da noite o adjunto da unidade entrou na cela da mesma agrediu e saiu dizendo agora matei a minha vontade no outro dia os direitos humanos entrou o diretor disse que se as apenadas que presenciaram falasse alguma coisa acontecia o mesmo com as que presenciaram. Emfim desde está data ela não parou de ser agredida nem um dia.

O que queremos é Justiça pra que todos os problemas desse lugar ser resolvidos.

E queremos que saia um verdadeiro exame com a certeza com a certeza de que todos aqui tem vida!"


"Socorro nos Ajude! Direitos Humanos.:

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS IV CARTA 4.1




 "João Pessoa

05.05.2013

Lamentações!


A vida de Adriana

Aqui estou contando o sofrimento de uma companheira.

Tudo começou quando ela foi pedir um atendimento médico, de lá começaram a bater nela algemada e sairam arrastando ela, pelos cabelos até o pavilhão do seguro, os acusados são os agentes com o nome de Fred e Daniel.

Chegando lá algemada e eles permaneceram batendo nela pisas do por todo o corpo, e a mesma ficou problemas mental não podendo sofrer nem um tipo de agressão em seguida chega uma agente penitenciaria pedindo pra que paracem de bater nela porque ela é um ser humano.

Em seguida pegaram ela e botaram numa cela, e a diretora, chegando no local e disse que iam levar para o exame" (continua no próximo post)

REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS III CARTA 3


 "Para os direitos humanos


Eu presa passo por muitas coisas aqui dentro dessa cadeia, Quando eu fui para o castigo mim colocaram junto com "Adriana Paiva" ela estava sendo muito maltratada, ela apanhava muito eu cheguei a assinar um desacato porque aonde ela estava nem comida elas levavam, só quando elas bem queria, chegaram na cela pra dar um pente fino e não encontraram nada pegaram um balde de água jogaram na cabeça dela deram um choque e fizeram ela comer sabão e nós que estavamos com ela não podiamos fazer nada por que são muitos e nós também estavamos passando pela mesma situação eu cheguei até apanhar na cara mim deram até pontapé e levam pra delegacia por que nos presinhas não podemos falar nada, porque se nós falarmos ou pedimos qualquer coisa o o negócio delas é delegacia, castigo ou peia e mais falaram que nós não passavamos de um bocado de lixo, e de piconas, Quando ela chega bebada de madrugada, ficar chutando as presas na grade, nós somos humilhada até pela comida que não presta, e quando uma sai quase morta e o hospital é a praça nós só queremos tirar nossa cadeia e procurar os nossos direitos."

domingo, 29 de junho de 2025

PARECER IAB: PL SOBRE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS DUPLOS POR PESSOAS PRESAS PARA FINS DE REMIÇÃO DA PENA




PREZAD@S, APRESENTO PARECER DE MINHA AUTORIA PELA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS. APROVADO EM SESSÃO PLENÁRIA.

Indicação 2023 Projeto de Lei 2.822/2002

Cuida de proposta de doação de órgãos duplos por pessoas presas para fins de remição da pena.

Indicação proposta pela Confreira Dra Ana Arruti

EMENTA: PROJETO DE LEI 2.822/2022. AUTORIA DO SENADOR STYVENSON VALENTIM (PODEMOS/RN). DOAÇÃO DE ÓRGAOS DUPLOS DE PESSOAS PRESAS MEDIANTE REMIÇÃO DE PENA. PROPÕE ALTERAR O ART. 9º DA LEI 9.434/1997 E O ART. 126 DA LEI 7.210/1984. INDICAÇÃO ORIGINÁRIA COMISSÃO DE CRIMINOLOGIA DO IAB. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. VÍCIO DE CONSENTIMENTO. TORTURA. IMPOSSIBILIDADE EM CONFORMIDADE COM O ART.7º DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

1. RELATÓRIO

A Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros foi provocada para emissão de parecer sobre o Projeto de Lei (PL) nº 2.822/2022, conforme indicação originária da Comissão de Criminologia, tendo como confreira indicante a Dra Ana Arruti.

Cuida ainda a Indicação nº (xx) de análise legal do Projeto de Lei nº 2.822/2022 de autoria do Senador Styvenson Valentim (PODEMOS/RN), para que pessoas que estejam presas e sentenciadas possam ter remição de até 50% da pena total e cumprimento do restante em regime aberto, caso se torne com este propósito doador de órgãos duplos (rins e pulmão). A exigência imposta pelo Projeto de Lei em referência é que a pessoa presa já tenha cumprido pelo menos 20% da pena.

Ainda informa a referida indicação que o PL 2.822/2022 está apensado a outras propostas, citando, por exemplo o Projeto nº 1.321/2003, que no mesmo viés, propõe que “ o presidiário que se inscreva como doador vivo de órgãos , partes do corpo humano e tecidos para fins terapêuticos requerer redução de pena após a aprovação do procedimento cirúrgico”.

A justificativa do Senador Styvenson Valentim, sobre a necessidade do PL 2.822/2022, deve-se ao debate transnacional do tema e que encontraria arrimo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.

O referido PL viria a modificar o artigo 9º da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997 e a Lei de Execuções Penais.

É o Relatório, passo a opinar.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Com fincas nos artigo 3º, II do Estatuto do Instituto dos Advogados Brasileiros, artigo 69 do Regimento Interno da Casa de Montezuma, bem como da Resolução 03/2018, passa a discorrer sobre a fundamentação jurídica que embasará a conclusão do presente parecer.

A legislação brasileira trata da possibilidade de doação de órgãos duplos no artigo 9º, da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, não havendo nenhum impedimento que pessoas presas possam doar dentro das condições estabelecidas, bem como a presa grávida poderá doar voluntariamente sangue placentário e do cordão umbilical até o momento do parto, conforme o art. 9º- A da referida lei. Em momento algum, exclui a pessoa presa de atender espontaneamente ao princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio constitucional da solidariedade.

Ocorre, que em caso de doação, não poderá estar na expectativa de remição de pena pelas razões que serão expostas mais adiante, por entender-se que tal prática possa configurar torturacontra a pessoa apenada e essa autorização de doação de órgãos ser viciada por razões estranhasao senso de solidariedade.

Em caso de aprovação do referido PL 2.822/2022 e caso não sofra nenhuma modificação em nenhuma das Casas legislativas, em conformidade com a redação original, o art. 9º da Lei 9.434/1997 passará a ter seguinte redação:

“Art. 9º ......................................................................................

...................................................................................................

§ 9º É facultado ao condenado, de forma livre e voluntária, devidamente acompanhado por advogado, na presença do Juiz da execução penal e após ouvido o Ministério Público, doar órgão duplo nos termos da lei, em caráter humanitário, para fins de remição na forma da Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984.”

Igualmente os artigos 13, parágrafo único e 14 do Código Civil Brasileiro trazem a possibilidade de doação de órgãos e disposição do próprio corpo por qualquer pessoa, inclusive sem exclusão das pessoas presas, frisando que essa doação é sempre com o caráter gratuito, amparada no princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da solidariedade, justamente para evitar possíveis comercializações ou “trocas” entre doador e donatário/receptor.

A doação de um órgão duplo causa um quadro irreversível, razão pela qual, ninguém deve ser compelido a fazê-lo, não podendo ser assim constrangido, conforme inteligência do artigo 15 do Código Civil Brasileiro e tratando a legislação específica, assim como a lei substantiva civil da gratuidade do ato, sem nenhum tipo de favorecimento ou benesses.

O Projeto de Lei nº 2.822/2002 ignora que além de não haver impedimentos para que pessoas presas possam doar órgãos e disporem do próprio corpo, tal decisão é sempre motivada pelo sentimento de solidariedade, cujo princípio da solidariedade é abarcado pelo Estatuto Básico, art. 3º, I. Também despreza o referido projeto que a “barganha” com a pessoa presa para que a partir de um ato que deve ser voluntário e gratuito, possa se livrar do constrangimento do cárcere e das mazelas do sistema prisional brasileiro fere justamente o princípio constitucional da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil.

Tal projeto de lei segue a corrente de que presos são pessoas improdutivas, sem dignidade, reincidentes poder de escolha e que devem compensar a sociedade pelos males causados, nem que seja com disposição dócil de seus corpos, justificando um verdadeiro e aberrante extrativismo humano. Tal proposta caracteriza a ideia estigmatizada pela Teoria do Conflito, em especial a Teoria do Labelling Approach, e tal projeto seria uma “redenção” à pessoa presa que já traz um estigma do qual se deve buscar a remissão da sociedade (no sentido de perdão).

A remição proposta pelo Projeto de Lei nº 2.822/2022 alteraria da seguinte forma a Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984, a célebre Lei de Execuções Penais, veja-se:

“Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado

ou semiaberto poderá remir, por trabalho, por estudo ou por doação de órgão duplo, parte do tempo de execução da pena.

...................................................................................................

§ 9º No caso da doação de órgão duplo, o condenado deverá

ter cumprido 20% (vinte por cento) da pena para poder fazer uso da remição.

§ 10. Uma vez realizados todos os procedimentos necessários para fins da doação, ela será custeada pelo Estado e realizada nos termos da Lei.

§ 11. O condenado que realizar a doação fará jus a uma redução de 50% (cinquenta por cento) da pena total imposta, devendo cumprir o restante da pena em regime aberto, com as condições a serem definidas pelo Juízo da execução

§12. A remição de pena por doação de órgão duplo não se aplica na hipótese de reincidência em crime hediondo.”

Como verificado in albis, o referido projeto reforça a Teoria do Conflito com a exclusão da possibilidade de remição em caso de doação de órgãos duplos por pessoas reincidentes em crimes hediondos, fazendo assim acepção de doadores, e se contrapondo à própria justificativa do projeto que é atender aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (por parte

do donatário/receptor) e da solidariedade (por parte do doador pessoa presa). Permanece assim aprática do etiquetamento social e não ressocialização de pessoas presas.

No que tange à prática de tortura em viciar o consentimento de pessoas presas para fins de doação de órgãos, tanto o art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como art.1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 04, de 23 de maio de 1989 e promulgado pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991) não apresentam rol taxativo das práticas consideradas como tortura.

“Art. 5º “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”

“Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”

Ademais, o art. 2º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes clarifica que o rol descrito no artigo primeiro se apresenta em “numerus apertus’.

Art.2º. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringirqualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.

Seguindo o raciocínio que a prática proposta pelo Projeto de Lei nº 2.822/2002 configura tortura em tese, cita-se justamente o disposto no artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia -Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992), que corrobora com a tese em questão:

“Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas.” (Grifo nosso)

Ora, qualquer pessoa privada de liberdade não tem como consentir livremente sobre qualquer proposta que venha a acenar com a possibilidade de liberdade. Outrossim, não há como não dizer que essas pessoas presas não serão submetidas a “experiências médicas ou científicas”, uma vez que o risco de rejeição de órgãos pelo receptor, ainda que do mesmo tipo sanguíneo é de alta probabilidade, não prevendo inclusive a possibilidade de remição ainda que haja incompatibilidade pelo pretenso donatário/receptor.

Pelo Princípio da Indivisibilidade dos Direitos Humanos não se pode separar a proteção dos direitos da personalidade dos demais direitos proclamados por Tratados, Declarações ou ainda pelo costume internacional aplicados em matéria de Direitos Humanos. Outrossim, é necessário entender o conceito de vício de consentimento, razão pela qual cita-se oportunamente San Tiago Dantas.

O Projeto de Lei nº 2.822/2022 também entra na seara do Direito Civil, uma vez que a doação de órgãos duplos, ou tecidos, ou sangue, etc, tem a natureza jurídica de de negócio jurídico bilateral unilateral gratuito, isto é, um tipo inominado que se assemelha ao contrato de doação. Por tais razões, não há como concordar com doação de órgãos duplos mediante qualquer tipo de “barganha” como a proposta pelo referido projeto de lei, porque qualquer negócio jurídico bilateral unilateral gratuito importa em liberalidade daquele que faz, sem a espera de contraprestação. Cita-se por exemplo o Contrato de Barriga Solidária que é negócio jurídico bilateral unilateral gratuito e atípico, em que não é devida nenhuma contraprestação ao que gera em seu ventre o bebê. O mesmo entendimento aplica-se aos casos de doação de órgãos, sangue, etc, podendo se falar nesse caso em atendimento ao princípio constitucional da solidariedade.

Por se tratar a doação de órgãos de pessoas vivas de negócio jurídico bilateral unilateral gratuito, o consentimento não pode ser viciado sob pena de invalidade do próprio negócio jurídico. Não pode haver máculas à declaração de vontade. Conforme ensinamentos do civilista San Tiago Dantas ia vontade é a substância do ato jurídico, senão vejamos:

“Muito comumente os atos jurídicos apresentam defeitos que os tornam anuláveis, os quais têm a sua sede na declaração de vontade. A vontade é a substância do ato jurídico. De modo que, se a sua manifestação não corresponde ao que o agente verdadeiramente quer, ou, se o querer do agente estava travado, em consequência de uma causa qualquer capaz de tolher o seu arbítrio, o ato se apresenta viciado e a conseqüência é que a parte por ele prejudicada, ou a própria parte, cuja vontade não estava sã, pode promover a sua anulação pelos meios estabelecidos na lei.” (grifo nosso)

Ora, em casos irreversíveis como a doação de um dos órgãos públicos, corre o risco do Estado sofrer demandas judiciais com fins indenizatórios, haja vista que a doação de órgão não pode ser desfeita. Segundo ainda San Tiago Dantas sobre vício de consentimento:

A conseqüência, então, destes vícios e defeitos que o ato jurídico pode apresentar quanto à vontade é torná-lo anulável. Nem sempre a repristinação é possível, ou porque foram praticados atos que, em si próprios, não podem ser modificados nos seus efeitos, principalmente, ou porque as coisas que se desligaram de umpatrimônio para outro, já não podem ser mais repostas no seu estado antigo e, assim, em vez de uma repristinação, tem lugar uma indenização; compõe-se pecuniariamente o prejuízo que houve. (grifo nosso)

Ainda, analisando San Tiago Dantas sobre os vícios do consentimento ou da vontade, o caso de doação de um dos órgãos duplos por pessoas privadas de liberdade e já sentenciadas, aplicando-se os ensinamentos do grande civilista ao entendimento aqui apresentado, a vontade estaria “perturbada”, manifestada sob condições de medo, haja vista a condição de vulnerabilidade da pessoa presa que emite manifestação de vontade, podendo caracterizar coação, já que sua autodeterminação encontra-se bastante reduzida.

“Classificam-se os defeitos jurídicos da vontade em dois grandes grupos. No primeiro grupo se colocam os casos em que há discordância entre a vontade e a declaração de vontade; em que se não apresenta defeito algum, na vontade, delineou-se esta claramente na consciência do agente, mas, no momento de exprimir a vontade. O agente, por erro, ou propositadamente, exprimiu coisa diversa daquela que estava no seu ânimo. Este é o primeiro grupo de defeitos que consistem na discordância entre a vontade e a declaração. O segundo grupo que se chama o grupo dos vícios, reúne os casos em que a própria vontade está perturbada, de tal maneira que, ou positivamente o agente não quis aquilo que manifestou ou, então, foi levado a definir a sua vontade num sentido diverso daquele para o qual se orientaria, se não interferissem as causas do vício .

(...)

Veja-se agora os vícios da vontade. O primeiro a considerar-se é a coação que é a deliberação debaixo do medo. Estando submetida a uma ameaça ou a uma violência atual, a pessoa decide-se a enunciar uma vontade que, na verdade, não corresponde ao seu querer. E a coação.

Tem-se aí a vontade mesma viciada; não é a declaração, pois não há a menor discordância entre a vontade e a declaração; a pessoa declara realmente aquilo que resolveu declarar, mas apenas resolveu em conseqüência de uma ameaça que foi mais forte que a sua própria liberdade.”

Micheletti e Lamy ao mencionarem os princípios das Regras de Mandela informam que há uma prejuízo do direito à autodeterminação de pessoas presas, justamente por sua condição de pessoa privada de liberdade, fundamentando a tese de que isso implica no livre consentimento da pessoa presa para quaisquer atos que possam estar relacionados à possibilidades invasivas de remição da pena, como o proposto pelo Projeto de Lei nº 2.822/2022

“Dentre seus princípios, tem-se que “todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido à tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância”. Ademais, explicita-se que o encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade.”ii (grifo nosso)

A interpretação sistemática utilizando-se Direito Civil, Direitos Humanos e Direito Constitucional não é despicienda, uma vez que também na análise da aplicação de normas que visem coibir violação de Direitos Humanos, aplica-se a norma mais favorável à pessoa humana, conforme citação da Magistrada Flávia Piovesan sobre entendimento do Ministro Celso de Mello:

“Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico

básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana (...).”

O Pacto dos Direitos Civis e Políticos trouxe justamente como novidade, segundo Konder Comparato, a equiparação à tortura de experimentações médico-científicas sem o consentimento da pessoa ou ainda sem as devidas informações dos riscos e consequências.

“A grande novidade da proibição constante do artigo 7º do Pacto consiste em assimilar à tortura , ou aos tratamentos penais cruéis, desumanos e degradantes, a submissão de alguém , sem o seu consentimento, a experimentações médico-científicas. É claro que essa disposição refere-se, antes de mais nada, às práticas atrozes perpetradas pelos Estados totalitários, notadamente o Estado nazista, em seus campos de concentração. Mas ele abrange também pesquisas médicas e cientificas de alto poder ofensivo, levadas a efeito em alguns Estados Democráticos, sem que pacientes ou a população soubessem do que se tratava”iii. P. 305

Apesar do entendimento sobre “consentimento” não especificar os vícios da manifestação de vontade, não há que se falar em derrogação do dispositivo previsto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos. No caso em questão, não há possibilidade de derrogar o previsto no artigo 7º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, em favor do Projeto de Lei 2.822/2022 ,mesmo em nome da aplicação de uma norma supostamente mais favorável, conforme possa fazer crer o referido projeto, haja vista evocar as expressões remição, solidariedade e dignidade da pessoa humana, haja vista que segue-se o entendimento da assaz citada Flávia Piovesan, uma vez que não é autorizada derrogação, ainda que temporária da proibição de tortura.

“Apenas, excepcionalmente, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos admite a derrogação temporária dos direitos que enuncia. À luz de seu art. 4º, a derrogação temporária dos direitos fica condicionada aos estritos limites impostos pela decretação de estado de emergência, ficando proibida qualquer medida discriminatória fundada em raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. Ao mesmo tempo, o Pacto estabelece direitos inderrogáveis, como o direito à vida, a proibição da tortura e de qualquer forma de tratamento cruel, desumano ou degradante, a proibição da escravidão e da servidão, o direito de não ser preso por inadimplemento contratual, o direito de ser reconhecido como pessoa, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, dentre outros. Isto é, nada pode justificar a suspensão de tais direitos, seja ameaça ou estado de guerra, perigo público, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos permite ainda limitações em relação a determinados direitos, quando necessárias à segurança nacional ou à ordem pública (ex.: arts. 21 e 22)”

Considerando ainda o perfil da população carcerária atualmente no Brasil, pode-se ainda dizer que o referido Projeto de Lei nº 2.822/2022 irá recair sobretudo sobre a população negra do país (pretos e pardos), que em virtude do racismo estrutural e institucional também se vê alijada de uma boa qualidade na prestação de serviços de saúde, em que não se consideram especificidade de saúde da população negra, não tratando o referido processo inclusive da assistência médica que deve ser dada aos doadores em virtude do quadro irreversível que se forma com a doação de um órgão duplo (no caso, pulmão ou rim). Também pode-se dizer que é um Projeto de lei racista, classista e aporofóbico, haja vista que a maior parte da população carcerária no Brasil tem o perfil a seguir:

“As prisões no Brasil: espaços cada vez mais dedicados à população negra do país

Os dados sobre encarceramentos relativos à raça/cor disponibilizados pelo 14º Anuário Brasileiro indicam alta concentração entre a população negra. Em 2019, os negros representaram 66,7% da população carcerária, enquanto a população não negra (considerados brancos, amarelos e indígenas, segundo a classificação adotada pelo IBGE) representou 33,3%. Isso significa que, para cada não negro preso no Brasil em 2019, dois negros foram presos. E um pouco mais que o dobro, quando comparado aos brancos.

Ainda que o maior encarceramento de pessoas negras não seja propriamente uma novidade, ao se analisar a série histórica do dado raça/cor dos presos no Brasil, fica explicito que, a cada ano, esse grupo representa uma fração maior do total de pessoas presas. Se, em 2005, os negros representavam 58,4% do total de presos, enquanto os brancos eram 39,8%, em 2019, essa proporção chegou a 66,7% de negros e 32,3% de brancos. A taxa de variação nesse período mostra o crescimento de 377,7% na população carcerária identificada pela raça/cor negra, valor bem superior à variação para os presos brancos, que foi de 239,5%. Ou seja, as prisões no país se reafirmam, ano a ano, como um lugar para negros. No Brasil, se prende cada vez mais; no entanto, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. Existe, dessa forma, forte desigualdade racial no sistema prisional, materializada não somente nos números e dados apresentados, como pode também ser percebida concretamente na maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aos negros. Aliadas a isso, as chances diferenciais e restritas aos negros na sociedade, associadas às condições de pobreza que enfrentam no cotidiano, fazem com que se tornem os alvos preferenciais das políticas de extermínio e encarceramento do país.”iv

Infere-se que o Projeto de Lei nº 2.822/2022 deve ser rejeitado por configurar a possibilidade de prática de tortura, violação do princípio da dignidade da pessoa humana e ir contra a possibilidade de autodeterminação, viciando o consentimento da pessoa presa. Outrossim, tal proposta esbarra inclusive nos direitos da personalidade previstos no art. 15 do Código Civil Brasileiro.

Nesse mesmo diapasão deve ser rejeitada a referida proposta legislativa por ferir tratados internacionais de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário e ratificado pelo Congresso Nacional, a saber: Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 1966.

3. CONCLUSÃO

Ex Positis, infere-se que o Projeto de Lei nº 2.822/2022 deve ser rejeitado por configurar a possibilidade de prática de tortura, experimento científico, violação do princípio da dignidade da pessoa humana, atenta contra a possibilidade de autodeterminação e direitos da personalidade, viciando o consentimento da pessoa presa.

Por outro lado, não há nenhuma proibição legal que impeça da pessoa presa dispor e doar órgãos duplos, desde que seja por mera liberalidade, dentro do princípio constitucional e familiar da solidariedade, desde que as razões sejam estranhas ao Projeto de Lei nº 2.822/2022.

Requer, portanto, a rejeição da proposta e que cópia do parecer seja remetido ao Relator do Projeto de Lei nº 2.822/2002, Senador Otto Alencar (PSD-BA) e para a Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal.

É o parecer, salvo melhor juízo.

João Pessoa, 26 de junho de 2023

Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó Membro Efetivo – OAB/PB 11.151

i DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Vol. 1, 1979.

ii MICHELETTI FELÍCIO, Érick Vanderlei e LAMY, Marcelo. O direito à saúde no ambiente prisional brasileiro: reflexões sobre o Dever Ser e o Ser. ABRACRIM, 2022.

iii COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 12 d. Saraiva: São Paulo, 2019.

iv VARGAS, Tatiane. https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418 Acessado em 26.06.2023


REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS II CARTA 2/2






(Continuação)
 "piconas, mancosas, comedias, quem manda nessa porra sou eu, aqui é oque eu quero, presas aqui não tem vez, agora voltando a historia de adriana que na verdade não é uma história, mais sim um final muito triste, pois de tanto sofrer, já chegaram até fazer ela comer sabão, é quebraram uma garrafa de gelo na cabeça dela, muitas vezes ela chegava a durmi algemada, e toda quebrada de paú por mais que nós erramos um dia, isso não é justiça, tirar a vida de alguém assim, estamos revoltadas com tamanha crueldade aí isso é vida de um ser humano ou de um (bixo) o que vocês dos direitos humanos diz a respeito disso? pois a direção nos trata como bixo, quando a nosso família está aqui, ela se faz de anjo, quando a familia vai embora ela, mostra o diabo que é, fria e tratando todas mal sem respeito com ninguém isso é um absurdo queremos ver a lei dos direitos humanos agora neste momento de sofrimento com a pessoa de alguém tão especial, todas nós estamos de coração partido, esperamos justiça. redecarmas (sic) nossos direitos de apenadas."

PERSEGUIÇÃO DA PGE-PB A MANDO DO GOVERNO (2013) PARA ME INTIMIDAR SOBRE AS TORTURAS

 PREZAD@S, O PROCESSO QUE TRAMITOU NO TRIBUNAL DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB/PB (2013-2015) SOB A ACUSAÇÃO DE QUE EU TERIA FALSIFICADO AS CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS NO PRESÍDIO MARIA JULIA MARANHÃO (BOM PASTOR) FOI JULGADO IMPROCEDENTE EM 2015. O ÔNUS DA PROVA CABIA AO ACUSADOR, NO CASO AO CORREGEDOR GERAL DA PGE E EX-PRESIDENTE DA SINDICÂNCIA QUE (NÃO) APUROU AS TORTURAS COMETIDAS CONTRA PRESAS E O "SUICIDAMENTO" DE ADRIANA DE PAIVA RODRIGUES, SR. SEBASTIÃO LUCENA. COMO EU NÃO FALSIFIQUEI NADA, MAS SOU SIM, TESTEMUNHA DOS RELATOS E VI PRESAS TORTURADAS, MORRO DIZENDO OS MESMOS FATOS. PRIMEIRA INVESTIDA NA TENTATIVA DE ME INTIMIDAR. SÓ NÃO PROCESSEI O ESTADO, PORQUE EU GOSTO DE GANHAR MEU DINHEIRO TRABALHANDO E HONESTAMENTE. AGORA, SE EU NÃO FALSIFIQUEI AS CARTAS, HÁ OU NÃO TORTURA A PARTIR DOS RELATOS DAS PRESAS? COM A PALAVRA O GOVERNO DO ESTADO DA PARAÍBA! A PGE! A OAB/PB  QUE NUNCA FEZ UM DESAGRAVO! AO MPPB! AO TJPB! FUI REPRESENTADA NA OAB/PB, PORQUE OCUPAVA O ASSENTO DE CONSELHEIRA ESTADUAL DE DH REPRESENTANDO IRONICAMENTE A CASA DOS DIREITOS HUMANOS (OAB). FOI COM ESSE PROCESSO QUE TEVE INÍCIO O ASSÉDIO PROCESSUAL NO GOVERNO RC E BLOGS SUSTENTADOS COM DINHEIRO PÚBLICO PARA ME DIFAMAR. O PORQUÊ? PRIMEIRO: A ESQUERDA TEM UM GRAVE PROBLEMA QUE É NÃO ADMITIR AS PRÓPRIAS FALHAS QUANDO ACONTECEM E VER QUEM CRITICA COMO INIMIGO. SEGUNDO: PORQUE DESDE 2008 EU TENHO QUE LIDAR COM OUTROS TIPOS DE VIOLÊNCIA PELO FATO DE COMO MULHER TER ME RELACIONADO BREVEMENTE EM 2007 COM QUEM MANDOU TERCEIROS ME PERSEGUIR. É NORMAL UMA MULHER AGUENTAR A ESTRUTURA DO ESTADO SOBRE ELA PARA FINS DE PERSEGUIÇÃO E RESUMIR MEU TRABALHO, UM TRABALHO SÉRIO COMO ESSE, DE DENÚNCIA DE TORTURAS COMO "PROBLEMA DE "CAMA MAL RESOLVIDA" COMO FEMINISTAS FALAM AQUI (E UM PROMOTOR QUE PEDIU PRA ARQUIVAR UM HOMICÍDIO COMETIDO POR UM GRANDÃO TAMBÉM?). E SRAS FEMINISTAS, SE EU NÃO TRANSEI COM O DEDO OU COM UM VIBRADOR, POR QUE O PROBLEMA É DA MINHA PARTE E NÃO DO HOMEM QUE PERSEGUIU A MIM E A MUITAS OUTRAS? VOCÊS NÃO VÊEM TORTURA EM PRESÍDIOS? NÃO PENSEM QUE O PATRIARCADO DE SAIAS A QUE MUITAS ASPIRAM DARÃO ESPAÇOS A VOCÊS. ENQUANTO ISSO, VAMOS CONTINUAR FALANDO DE TORTURA SIM!

LAURA BERQUÓ






REPRODUZINDO SEPARADAMENTE CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS II CARTA 2/1


 "Para os Direitos Humanos


Aqui falamos sobre o sofrimento de uma presa (Adriana Paiva Rodrigues da Silva) conhecida como Bisqui, aonde vimos todo seu sofrimento de perto ao ser espancada diariamente pelo Sistema penitenciario Maria Júlia Maranhão, todas as vezes que tentava se comunicar através da asistente social com a familia era empedida por eles chegando ao ponto de ser espancada é não era só uma vez, era todas as vezes, estando aqui pelo fato de artigo 155, chegando a passar seu tempo de ir embora tendo como visita só o seu pai.

Já chegaram ao ponto de jogar ela para morar no seguro para não vermos o que o sistema penitenciario fazia com ela, Batiam nela, pizotiavam a cara dela, espancavam ela com cacetete, jogavam sprei de pimenta no rosto dela sufocavam ela com apertos no pescoço chegando ao ponto dela, desmaia, é muitas vezes deixavam ela sem o alimento tratada como um animal, isso não pode acontecer, porque somos presas da justiça e conhecemos nossos direitos. A Diretora Chintia Almeida quando ela entra no corredor, que tentamos falar com ela, ela nos trata como presas, " (continua)


Essa foi a parte 1 da Segunda Carta

PL N° 778/2025: PROSTITUIÇÃO E HIGIENISMO SOCIAL EM PLENO SÉCULO XXI

 


No dia 02 de junho se comemora o Dia Internacional da Prostituta. Aproveito o ensejo da data para comentar o Projeto de Lei n ° 778/2025 do Deputado Federal Kim Kataguri (UNIÃO BRASIL/SP), que pretende tornar o 'trottoir' contravenção penal. Assim dispõe o referido projeto:

"Altera o Decreto-Lei n° 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), para prever a contravenção penal de prostituição em via pública.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º O Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com a seguinte alteração:

“Art. 47. ......................................................

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou

multa, de 50 a 100 dias-multa.

Prostituição em via pública

Parágrafo único. Incide na mesma pena do caput deste artigo o agente que se prostituir em via pública.” (NR)

Art. 3° Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."

Embora se trate de um tipo mais leve de infração penal, a contravenção penal não deixa de caracterizar um ilícito penal. Muito interessante essa preocupação com as vias e moralidade públicas. Estamos retomando o higienismo social, com uma proposta moralizante e puritana como se estivéssemos em pleno início do século XX. O cronista João do Rio, em sua obra "A Alma Encantadora das Ruas", publicada em 1908, traz um capítulo em que o autor pontua "onde acaba a rua", conduzindo obviamente para o sistema carcerário carioca daquele tempo. O perfil prisional feminino desde então não apresentou mudanças, onde a maioria das mulheres presas era e continua composta por mulheres negras (pretas e pardas), com raras exceções na época (1908) de brancas, havendo também uma homogeneidade nas práticas ilícitas apontadas contra as mulheres. Se hoje temos um perfil de mais de 63 % da população carcerária feminina processada pela Lei de Drogas, naquele Rio do início do século XX a mendicância, a prostituição e todas as exposições causadas pela exclusão social da mulher negra e pobre as conduziam ao cárcere, dentro da mesma mentalidade de higienismo social que denunciamos aqui. Um clássico do anarcofeminismo brasileiro de 1924, intitulado ‘Virgindade Anti-higiênica. Preconceitos e Convenções Hipócritas de Ercília Nogueira Cobra, considerada pornográfica pela moralidade "higienista" é uma crítica ainda atual à condição econômica da mulher e sua exclusão social e sexual, pela falta de acesso à capacitação profissional que levava e leva à prostituição. No caso das mulheres trans e travestis não há diferenças. Na obra ‘Transfeminismo’ da Profa. Dra Letícia Carolina Nascimento (UFPI) é trazido o seguinte dado: "estima-se que 72% da população trans* não possua ensino médio". Letícia Nascimento ainda observa que travestis e transexuais são expulsas de casa em torno dos 13 anos de idade. E sobre a prostituição de mulheres trans e travestis diz: "A grande questão é que, para muitas, essa é a única opção de trabalho, já que os empregos formais excluem travestis e transexuais não apenas por conta da transfobia estrutural, mas também pelo fato de elas não terem componentes mínimos exigidos em muitos empregos, tais como ensino médio completo". Como tenho uma visão amoral da prostituição, não podemos esquecer que a prática da prostituição em si nem sempre traz como determinante a exclusão social de mulheres cis e trans, mas também a liberdade da mulher em fazer o uso que bem entender do seu capital erótico, termo cunhado pela socióloga inglesa Catherine Hakim, questionando sobretudo em sua obra Capital Erótico o comportamento puritano de feministas anglo-saxônicas que são contra a prostituição e do ‘capital erótico’ feminino em geral. Ainda segundo a justificativa do Projeto de Lei n° 778/2025 do Deputado Federal Kim Kataguri, o que se tentará proibir é que profissionais do sexo façam ‘ponto’ em frente às casas de famílias, porque o fato das profissionais fazerem seu 'trottoir' nesses locais, segundo Kataguri, estaria impedindo o direito de ir e vir das referidas famílias. Pelo que concluímos, o problema para muitos seria topar com a figura da prostituta, impedindo o direito de locomoção da tradicional família brasileira... Ocorre que a prostituição em si, as chamadas profissionais do sexo possuem o CBO 5198-05. Elas também possuem o direito fundamental de ir e vir, o direito fundamental à liberdade de locomoção e de exercerem o seu ofício, de trafegarem e ocuparem as vias. Outro ponto do referido PL n° 778/2025 é que as profissionais do sexo seriam vetores (termo que uso a partir da ideia higienista e sanitarista bem ao espirito do projeto de lei em questão) para crimes de terceiros. Até onde se sabe, a pena é individualizada no Brasil. O princípio constitucional da intranscedência da pena não autoriza que terceiros paguem por crimes que não cometeram. Não há como a profissional do sexo ser responsabilizada pelo crime de proxenetas e cafetinas. Caso a profissional do sexo cometa algum crime, ela será responsabilizada por essa conduta em específico. Desnecessário esse projeto com viés puritano e higienista de tornar o 'trottoir' contravenção penal em pleno século XXI.

Laura Berquó

Advogada e Professora Adjunta (UFPB). Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Ex-Conselheira Estadual de Direitos Humanos (Paraíba). Membro efetivo dos Institutos dos Advogados Brasileiros – IAB

Fontes:

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 778, de 07 de março de 2025.

COBRA, Ercília Nogueira. Virgindade anti-higiênica: Preconceitos e convenções hipócritas. E-book (Kindle)

HAKIM, Catherine. Capital erótico. Pessoas atraentes são mais bem sucedidas. A ciência garante. Tradução Joana Faro. Rio de Janeiro: Best Business, 2012.

NASCIMENTO, Letícia Carolina. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Martin Claret, 2007


REPRODUZINDO SEPARADAMENTE AS CARTAS DAS PRESAS TORTURADAS I




"João Pessoa Júlia Maranhão

Nos presidiárias estamos revindicando nossos direitos por parte de todas as areias exclusive areia da saude que não temos atendimento.
Exclusive hontem no dia 04-03-2013 uma detenta por nome de Adriana Paiva conhecida por vugo de Biscuim morreu por falta de socorro e muitos maltrato por parte dos agente.
Peço as autoridade competente que nos ajude porque somos gente e não animal como eles dizem.
Estamos pagando o que devemos a Justiça. Por favor nos ajude pois não tao dando nossos direitos certo.
E essa diretora é muito (ilegível) ela humilha muito as presas e chama de todos os nomes ruim.
Nós estamos presas por Justiça e pelo a diretora que quando os alvará chega ela não deixa sair. Se tiver sindicancia e a Bisquim tinha atestado de doida não era pra ela tá aqui no presedio mas sim no Juliano Moreira peço que façam alguma coisa pois essa não vai ser a primeira e nem a ultima a ser morta pelo sistema
Ass. Presa do Júlia Maranhão"


 


sábado, 28 de junho de 2025

SAIU NA FOLHA EM 17.03.2013 AS TORTURAS NO INFERNO BOM PASTOR



 Desde 2013 as torturas e "suicidamento" de Adriana de Paiva Rodrigues ganharam projeção nacional. Mas aqui , fingiram que não viram:


https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/03/1247442-apos-denuncia-de-tortura-jovem-e-achada-morta-em-prisao-da-pb.shtml


"Após denúncia de tortura, jovem é achada morta em prisão da PB

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REYNALDO TUROLLO JR.

ENVIADO ESPECIAL A JOÃO PESSOA

Uma presa de 19 anos foi encontrada morta no início deste mês no presídio feminino de João Pessoa, após se queixar ao Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba que sofria "tortura" na cela. Segundo o relatório da vistoria feita na penitenciária Maria Júlia Maranhão em 17 de janeiro, a presa Adriana Paiva Rodrigues reclamava das ofensas de agentes penitenciários. "Era constantemente chamada de 'negra', 'macaca', 'picona' e 'presinha'", segundo o documento.

"Adriana ainda informa que durante o período no [regime] isolado já teria levado sete surras no total, tendo sido agredida na cabeça, razão pela qual hoje sofreria com convulsões", diz o relatório.

De acordo com a conselheira Laura Berquó, esse documento foi enviado à Secretaria da Administração Penitenciária antes de a presa morrer.

Adriana estava detida desde dezembro de 2011, sob acusação de desacato e dano ao patrimônio público.

Berquó afirma que o Conselho de Direitos Humanos estuda providências em relação ao caso.

OUTRO LADO

O corpo de Adriana foi encontrado pendurado na grade da cela do isolamento no último dia 4, informou a Secretaria da Administração Penitenciária da Paraíba.

Outras presas que estavam perto de Adriana relataram que a viram se suicidar, afirmou a pasta, em nota. A secretaria disse que aguarda o resultado da perícia para determinar as causas da morte.

Sobre o relatório do Conselho de Direitos Humanos, a secretaria informou, via assessoria, que recebeu as denúncias em janeiro e abriu sindicância para apurá-las." 17.03.2013 

#tjpb #mppb #paraiba #tortura #mulherespresas #racismo


 

TORTURAS NA PENITENCIÁRIA FEMININA MARIA JÚLIA MARANHÃO - PARTE 1

 

Foto: Andréa Giselle Cartaz feito por mim em 2013


PREZAD@S, COMEÇANDO O PRIMEIRO POST ONDE COLOCO POSTAGENS DESDE 2015 DO BLOG SOBRE FATOS OCORRIDOS EM 2013. PARA FACILITAR A PESQUISA. TRATA DA TORTURA DE PRESAS NO INFERNO BOM PASTOR, OFICIALMENTE CHAMADO PENITENCIÁRIA FEMININA MARIA JÚLIA MARANHÃO. NAS PRÓXIMAS POSTAGENS IREI POSTAR DURANTE A SEMANA AS PETIÇÕES QUE FORAM FEITAS ÀS AUTORIDADES ESTADUAIS, VEP, PROMOTORIA (VEP), MINISTROS, SEM NENHUM RETORNO E ABAFAMENTO DO CASO. TAMBÉM VOU POSTAR AS PERSEGUIÇÕES PROMOVIDAS PELO GOVERNO DO ESTADO POR MEIO DA CORREGEDORIA DA PGE-PB. 

POR QUE INSISTO? PORQUE ISSO É IMORAL E ILEGAL. VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES EM VÁRIOS NÍVEIS. TORTURAR É A DECADÊNCIA DO SER HUMANO. AS PRESAS NÃO DEIXARAM DE SER MULHERES. SEGUEM AS CARTAS QUE NÃO FORAM CONSIDERADAS POR AUTORIDADES, PORQUE FORAM ESCRITAS POR PRESAS. PRESAS NÃO TÊM "LUGAR DE FALA" APÓS O ETIQUETAMENTO? QUAL O MANDA-CHUVA POR TRÁS DA SEAP? POR QUE GOVERNADORES NADA FIZERAM PARA COIBIR ESSE TIPO DE COISA? HÁ MUITO MATERIAL INCLUSIVE PARA PESQUISA ACADÊMICA COMO JÁ FOI FEITA.


CORDIALMENTE,


LAURA


http://epahey2015.blogspot.com/2015/06/iii-coepir-e-mocao-de-repudio-torturas.html

 http://epahey2015.blogspot.com/2015/06/cartas-das-apenadas-do-bom-pastor-2013.html

 http://epahey2015.blogspot.com/2015/07/cartas-da-apenadas-do-bom-pastor-parte.html

 http://epahey2015.blogspot.com/2015/07/incoerencias-de-uma-sindicancia-fajuta.html

 http://epahey2015.blogspot.com/2015/07/c-caso-celebre-de-racismo-institucional.html

PARECER IAB: CRIMINALIZAÇÃO DA INTERSEXOFOBIA




PREZAD@S, PARECER DE MINHA AUTORIA APROVADA PELA COMISSÃO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS. PUBLICADO NO BLOG EM REFERÊNCIA AO DIA INTERNACIONAL DO ORGULHO LGBT.
SEGUE O PARECER ABAIXO:



Indicação nº 08/2025
Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de 2024.
Cuida da criminalização da intersexofobia no Brasil.
Indicação proposta pela Confreira Dra Marcia Dinis


EMENTA: PROJETO DE LEI Nº 2.921/2024. INDICAÇÃO ORIGINÁRIA COMISSÃO DE CRIMINOLOGIA DO IAB. CRIMINALIZAÇÃO DA INTERSEXOFOBIA. MANDADO DE INJUNÇÃO 4733-DF. ADO 28-DF. DIREITOS FUNDAMENTAIS. RACISMO SOCIAL.


1. RELATÓRIO
A Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros foi provocada para emissão de parecer sobre o Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de 2024 de autoria do Deputado Federal Clodoaldo Magalhães pelo Partido Verde - Pernambuco , conforme indicação originária da Comissão de Criminologia, tendo como confreira indicante a Dra Marcia Dinis.
Cuida a Indicação nº 08/2025 de análise legal do Projeto de Lei nº 2.921/2024 que “dispõe sobre a criminalização da intersexofobia e dá outras providências”.Segundo a douta indicante, Dra Marcia Diniz, o referido Projeto de Lei se encontra ainda em fase de indicação de relator na Comissão de Saúde (CSAÚDE) da Câmara dos Deputados Federais.
Analisando o Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de 2024, observa-se que o legislador proponente se preocupou com a criminalização da intersexofobia não só no que tange aos crimes de discriminação e preconceito, equiparados pelo STF (ADO 26-DF e MI 4733-DF) desde 13.06.2019 ao crime de racismo até que sobrevenha lei para suprir a lacuna legislativa. Mas conferiu um espectro mais específico ao tratar da violência hospitalar contra pessoas intersexo, senão vejamos:
“O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Fica instituída a criminalização da intersexofobia em todo o território nacional.
Art. 2º Define-se como intersexofobia qualquer ato de discriminação, violência, preconceito ou pressão contra pessoas intersexo, bem como seus familiares, em função de suas características sexuais, anatômicas e/ou genéticas.
Art. 3º Constitui crime de intersexofobia em ambiente hospitalar:
I. Qualquer tentativa de persuadir, pressionar, coagir ou forçar crianças intersexo, seus familiares ou responsáveis a submeterem-se a cirurgias estéticas nos genitais, no sistema reprodutor ou a procedimentos de hormonização com o objetivo de enquadramento a um gênero binário, sem o consentimento livre, prévio e esclarecido do próprio indivíduo intersexo;
II. Praticar atos de violência física, psicológica, simbólica ou moral contra pessoas intersexo e seus familiares em razão de suas características sexuais;
III. Promover, incitar, difundir ou apoiar atos de preconceito ou discriminação contra pessoas intersexo, em qualquer meio ou circunstância, dentro do ambiente hospitalar.
Art. 4º A pena para os crimes definidos no Art. 3º desta Lei será de:
I. Reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, se o crime não constituir outro mais grave;
II. Reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, se houver emprego de violência física ou psicológica;
III. Reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, se o crime for cometido por agente público ou no exercício de profissão ou cargo público.
Art. 5º O Estado, por meio de seus órgãos competentes, deverá promover campanhas educativas e de conscientização sobre a diversidade intersexo, buscando a erradicação do preconceito e a promoção da igualdade de direitos.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Nesse mesmo diapasão seguiu o entendimento da Confreira Dra Marcia Dinis para justificar a sua indicação, conforme a seguir, coadunando com a justificativa apresentada no PL nº 2.921, de 17 de julho de 2024:
“A intersexofobia é uma realidade enfrentada por milhares de pessoas que muitas das vezes nem sabem que são pessoas nascidas intersexo no Brasil. Durante décadas, bebês nascidos no sexo intersexo foram submetidos a cirurgias não consentidas (mutilações) e expostos a situações degradantes (hormonioterapia forçada e/ou obstáculos fabricados para impedir as pessoas nascidas intersexo de conseguirem efetivar o acesso ao direito de saúde (qualidade de vida). A ausência de proteção legal de bebês, crianças, adolescentes e pessoas adultas e idosas nascidas intersexo no território brasileiro tem permitido a perpetuação dessas violações de Direitos Humanos. O PL preenche uma lacuna jurídica essencial, garantindo proteção específica aos bebês, crianças, adolescentes e pessoas adultas e idosas nascidas intersexo. O PL se alinha a tratados internacionais de Direitos Humanos e visa impedir práticas médicas abusivas, assegurando o direito à autonomia corporal, direito de saúde, equidade e dignidade humana. O PL também prevê que o Estado Brasileiro, por meio de seus órgãos competentes, deverá promover campanhas educativas e de conscientização sobre a diversidade e pluralidade existencial das pessoas nascidas no sexo intersexo, de corporeidade fenotípica e/ou genotípica, buscando a erradicação do preconceito, do crime de intersexofobia e a promoção da equidade de direitos. O PL representa um marco legal na defesa, garantia, promoção e efetivação do bem comum das pessoas nascidas intersexo e seus familiares e um direito legislado visando a erradicação de práticas discriminatórias e abusivas no Brasil.”
Em razão do exposto, a indicante pugna para que a Casa de Montezuma se pronuncie acerca de tema tão relevante e que exige o enfrentamento por meio de políticas públicas para a garantia dos direitos fundamentais das pessoas intersexo:
“O debate acerca das politicas públicas sobre o tema e, em especial, sobre a criminalização da intersexofobia dentro de hospitais, é um avanço importante e necessário, mas infelizmente pouco suscitado até agora nas instituições acadêmicas e jurídicas. O IAB, instituição jurídica que tem como lema estar na vanguarda do direito e o dever estatutário de promover a defesa “das garantias individuais e coletivas e dos direitos humanos” (art. 2º, IV) não pode ficar alheio a tema desta importância.”
É o Relatório, passo a opinar.

2. FUNDAMENTAÇÃO
Com fincas nos artigo 3º, II do Estatuto do Instituto dos Advogados Brasileiros, artigo 69 do Regimento Interno da Casa de Montezuma, bem como da Resolução 03/2018, passo a discorrer sobre a fundamentação jurídica que embasará a conclusão do presente parecer.
Inicialmente, é interessante que se registre que ao pesquisar sobre intersexualidade a relatora do Parecer se deparou com a pouca atenção que se é dado ao tema, uma vez que na atualidade se discute mais a transgeneridade e a utilização da teminologia trans* (com asterisco) para designar de forma geral como termo “guarda – chuva” pessoas não-binárias, transmaculinas, mulheres trans e travestis, conforme conceituação contida na Cartilha O Ministério Público e os Direitos LGBT do Ministério Público Federal conjuntamente com o Ministério Público do Estado do Ceará .
Com a mesma carência nos deparamos ao analisarmos autores consagrados de sexologia no Brasil, que embora tratem desde o século XX de assuntos como transexualidade (transexualismo em manuais antigos por tratarem como parafilia e não como identidade de gênero), travestilidade (travestismo em manuais antigos por tratarem como parafilia e não como identidade de gênero), homossexualidade (homossexualismo em manuais antigos por tratarem como parafilia e não como orientação sexual), não dão a devida atenção ou nenhuma à pessoa intersexo.
Provavelmente, essa ausência, a forma como a pessoa intersexo é invisibilizada se deva mais a uma projeção coletiva inconsciente do medo da unidade ou totalidade representado pelo “andrógino”:
“O andrógino, signo da totalidade, aparece tanto no final e no começo dos tempos. Na visão escatológica da salvação, o ser reintegra-se a uma plenitude na qual a separação dos sexos se anula, e isso é o que evoca o mistério do casamento em inúmeros textos tradicionais, aproximando-se assim à imagem de Xiva e de sua Xácti. Todavia, essa crença universalmente afirmada na unidade original a que o homem deve se reintegrar post mortem está acompanhada também, na maioria dos temas cosmogônicos de uma necessidade imperiosa de diferenciar totalmente os sexos nesse mundo.” (Cheebrand: 1991)
Ainda, sobre o andrógino como símbolo psíquico da totalidade, podemos citar Mircea Elíade ao tratar do tema ao citar a literatura védica na obra Mefistófeles e o Andrógino:
“Os esforços feitos pelo homem para superar os contrários levam-no a sair de sua situação imediata e pessoal e a alçar-se a uma perspectiva transubjetiva; em outros termos, a atingir o conhecimento metafísico. Na sua experiência imediata, o homem é constituído por pares de contrários. Mais ainda: ele não só distingue o agradável do desagradável, o prazer da dor, a amizade da inimizade, como igualmente é levado a crer que esses opostos são também válidos no absoluto; em outras palavras, que a realidade última é passível de definição pelos mesmos pares de opostos que caracterizam a realidade imediata na qual o homem se encontra imerso pelo simples fato de viver no Mundo. Os mitos, os ritos e as especulações hindus abalam essa tendência humana a considerar a experiência imediata do Mundo um conhecimento metafisicamente válido que reflete, poder-se-ia dizer, a realidade última. Superar os contrários é, sabe-se, um leitmotiv da espiritualidade hindu. Pela reflexão filosófica e pela contemplação — como ensina o Vedanta — ou por técnicas psicofisiológicas e meditações — como recomenda a Ioga — chega-se a transcender as oposições e até a realizar a coincidentia oppositorum no próprio corpo e no próprio espírito.” (ELIADE: 1999)
  Ora, não há como realmente se entender a pouca visibilidade dada às pessoas intersexo e as violências por elas sofridas, tendo sido muito acertada, portanto, a referida indicação acerca do Projeto de Lei que será analisado. As pessoas têm o direito de existirem na sua plenitude, incluindo a forma como decidem se expressar corporalmente no mundo o que tem relação com o direito congênito à autodeterminação de identidade de gênero e/ou orientação sexual
Demanda-se, portanto, iniciar o parecer com a conceituação de pessoa intersexo. A Associação Brasileira de Intersexos nos traz o conceito de pessoa intersexo:
“Uma definição objetiva de Intersexo, feita pela Intersex Human Rights, sitiada na Austrália, define as pessoas Intersexo como as que têm características sexuais congênitas, não se enquadrando nas normas médicas e sociais para corpos femininos ou masculinos, e que criam riscos ou experiências de estigma, discriminação, ódio e danos. Essa definição é compartilhada pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. A declaração baseia-se em uma definição de características sexuais. Baseada nos Princípios de Yogyakarta mais 10, definem-se as características sexuais como sendo características físicas relacionadas ao sexo, incluindo cromossomos, órgãos genitais, gônadas, hormônios e outras anatomias reprodutivas, e características secundárias que aparecem na puberdade.”
Os Princípios de Yogyakarta Mais 10 (YP+10) são na verdade a inclusão de mais 10 “princípios” ao texto originário de 2006 que previa inicialmente 29 “princípios” que na verdade, têm a natureza de soft law. Citando nosso entendimento já exposado no Parecer em resposta à Indicação de nº 23/2024, proferido pela Comissão de Direitos Humanos acerca da Resolução Conjunta CNPCP/CNLGBTQIA+ nª 02, de 26 de março de 2024, os Princípios de Yogyakarta não possuem força coercitiva para aplicação, devendo nos concentrar, portanto, a outros instrumentos jurídicos que possam abarcar os direitos das pessoas intersexo no presente parecer:
“(...) a adoção de soft law não estaria nem adstrita à colmatação de normas jurídicas, pois não há nelas sequer natureza de costume internacional. Ainda que se alegue que são meramente recomendatórias, como visto as normas técnicas e as soft law também não possuem força coercitiva em caso de inobservância. O que de fato tem garantido a sua aplicabilidade é que elas não confrontam a legislação pátria e muitas das previsões dessas regras gerais se encontram em vigor no ordenamento jurídico brasileiro por meio dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos citados nas Considerações da Resolução Conjunta, bem como por direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. Ademais, os Princípios de Yogyakarta, embora seja na verdade um instrumento internacional de “boas intenções”, não pode sustentar a natureza de princípios jurídicos.” (BERQUÓ, 2024)
Ainda sobre a falta de natureza como princípios jurídicos dos chamados Princípios de Yogyakarta, não somente pela natureza de soft law, mas pela inexistência realmente de embasamento deontológico que os caracterizem como princípios, citamos a lição de Lenio Streck sobre pamprincipiologia:
“O Direito foi inundado por uma produção de standards valorativos, álibis teóricos pelos quais se pode dizer qualquer coisa sobre interpretação da lei. Um princípio – sem qualquer densidade deontológica – tem a “força” de derrotar o Direito posto, sem que o intérprete lance mão da jusrisdicação constitucional. A esse fenômeno dei o nome, desde 2004, depois de um debate com o professor Luis Roberto Barroso sobre o princípio da afetividade, de pamprincipiologismo, havendo uma longa lista de “pamprincípios” em Verdade e consenso (2014b; 2017) (...) O estado de arte do quadro principiológico se torna ainda mais complexo e problemático quando se constata que se está diante de um conjunto de “princípios” dos quais é difícil – para não dizer impossível – reconhecer o DNA em tempos de pós – positivismo (não positivismo) e da busca da autonomia do Direito. Em muitos casos, chega a ser impossível identificar o status dos aludidos “princípios”, isto é, se está diante de princípio constitucional, infraconstitucional ou de um enunciado no nível dos velhos “princípios gerais do Direito” . (2020; pp. 253-255)
Qual a legislação aplicável atualmente na proteção das pessoas intersexo? Mister abordar o MI 4733-DF e a ADO 26-DF. Desde 13.06.2019 a intersexofobia, assim como a homotransfobia, passou a ser tida como forma de racismo na sua extensa dimensão social, segundo entendimento do STF e por essa razão iremos tratar das legislações atinentes à questão racial no Brasil, atualmente aplicáveis no combate aos crimes homotransfóbicos até que lei específica supra a omissão legislativa.
A Constituição Federal de 1988, ineditamente na história constitucional do país, criminalizou o racismo, no artigo 5º, XLII, na condição de crime imprescritível e inafiançável. A década de 1980 durante todo o processo da Constituinte foi grande na participação de movimentos sociais negros, feministas e de povos originários. Não pode ser desprezado que o Brasil é signatário de vários tratados internacionais anteriores à própria Carta de 1988 que tratam da questão racial como, por exemplo a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1966, ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo nº 23, de 21 de junho de 1967 e que passou a vigorar a partir do Decreto nº 65.810, de 08 de dezembro de 1969.
 Recentemente, com status de Emenda Constitucional temos a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância de 2013 (Guatemala) em vigor desde a publicação do Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Quanto aos demais instrumentos legais internacionais vigoram no Brasil: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, em vigor com a publicação do Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, em vigor com a publicação do Decreto nº 591, de 06 de julho de 1992; a Convenção de Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, em vigor com a publicação do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992 e o Protocolo de São Salvador de 1988, em vigor com a publicação do Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999.
No que tange à aplicação da Lei Caó o que se pode ser dito é que a Lei n.º 7.716, de 05 de janeiro de 1989, que define os crimes de racismo e que assim foi nomeada em homenagem às iniciais do nome de seu autor, o Deputado Federal Carlos Alberto de Oliveira (Caó), tinha como pretensão definir os crimes de preconceito de raça e cor. Na justificativa do projeto de lei, o deputado aduz que o Brasil é um país racista e por isso a pessoa negra não consegue ter acesso à vida econômica e política do país.
A Lei Caó original, antes das alterações, somente tratava de crimes resultantes de preconceito de raça e cor. Tratava originalmente mais dos aspectos econômicos e sociais de acesso ao trabalho e ao consumo. No art. 3º, por exemplo, verificava-se a preocupação com o racismo institucional na não-ascensão a cargos da Administração Pública em geral e empresas concessionárias. Outros aspectos que preocuparam inicialmente o legislador: a) Coibir o impedimento do acesso ao lazer em virtude da discriminação; b). coibir o impedimento do acesso a estabelecimentos recreativos, a estabelecimentos estéticos; c) Coibir o impedimento do acesso às entradas sociais dos prédios e edifícios. Era a liberdade de ir e vir que estava sendo focada. Também visava coibir a discriminação dentro das Forças Armadas, vida e convívio familiar em razão da raça, cor e etnia.
    Após entrar em vigor, passou por diversas alterações, como a ocorrida primeiramente com a Lei n.º 8.081, de 21 de setembro de 1990, incluindo o elemento religioso: o art. 20, originalmente tratava somente das condutas tipificadas como “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, religião, etnia de procedência nacional através dos meios de comunicação, até que veio as alterações da lei n.º 8.882/1994 que incluiu o parágrafo primeiro.
Isso é um breve resumo da razão pela qual a Lei Caó foi criada, mas há questões técnicas que devem ser enfrentadas extremamente relevantes por serem extremamento relevantes e para não correrem o risco de tornarem o entendimento do Constituinte prejudicado em embates que possam ocorrer, como já ocorridos no Caso Ellwanger e que alcançam atualmente os crimes considerados homotransfóbicos.
Importante salientar que a falta de uma técnica legislativa adequada abre espaços para discussões acerca da prática de racismo e discriminação, haja vista que a própria Constituição Federal sem definir o que é racismo, assim como a lei ordinária não o faz, também não o fez com o crime de discriminação. O problema está no fato de que imprescritível seria o crime de racismo e não o de discriminação conforme teses levantadas durante a década de 2000 e amplamente aceita de forma minoritária inclusive por alguns Ministros do STF. Como pode o legislador não se ocupar em distinguir bem os tipos racismo e discriminação já que um não prescreve e outro prescreveria segundo entendimento aceito até princípio do século XXI para alguns Ministros do STF?
Em que pese a Lei Caó tipificar condutas como racismo e discriminação, deixou margem para que racistas alegassem estar “discriminando” e não cometendo “racismo” para poderem ser beneficiados pela extinção da ´punibilidade em decorrência do alcance da prescrição. Assim pode ser verificado a utilização dessa tese de “crime de discriminação” e a alegada possivel extinção da punibilidade pelo alcance da prescrição tanto no célebre Caso Ellwanger (HC 82424-RS), como também no HC 117.097-RJ.
Coube a juristas como Silvio de Almeida e Adilson Moreira fazerem a distinção entre racismo e discriminação, inclusive contextualizar para que não fosse utilizado como ferramenta de opressão contra a população racializada, haja vista que a lei se destina na verdade a proteger a parcela da população vítima de racismo estrutural no Brasil, estendendo a outros grupos historicamente marginalizados, que no caso em tela, podemos estender às pessoas intersexo. Nesse entendimento seguiu o Ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal ao proferir voto na condição de Relator no HC 154.248-DF ao confirmar mais uma vez o entendimento do Superior Tribunal de Justiça que o crime de injúria racial é imprescritível por ser espécie do qual o crime de racismo é gênero. Nesse entendimento, o crime de discriminação seria também espécie do crime do racismo afastando a prescrição que serviu como tese no Caso Ellwanger tendo sido condenado o antissionista e antissemita Elwanger Castan por 8x3 no STF por racismo e não por discriminação, por terem entendido a maioria dos Ministros, contrariando o entendimento do Relator Moreira Alves, que os judeus também foram racializados, porque o conceito de raça é uma construção política-ideológica utilizada por um grupo hegemônico para subjugar outro como foi o caso dos nazistas contra os judeus no holocausto durante a Segunda Grande Guerra Mundial fazendo surgir o conceito de genocídio por Rafael Lemkin. Assim expressa o jurista Silvio de Almeida ao distinguir preconceito, discriminação e racismo na sua obra Racismo Estutural. (2019, pp.22-24)
Mas seria imprescindível que o legislador ao tratar de tipificar condutas não deixasse tão em aberto a possibilidade de que conceitos importantes fossem sempre definidos pelos não-legisladores. Corre-se o risco de estarmos diante da ideia da legislação simbólica citando aqui a inteligência de Marcelo Neves “a legislação simbólica é caracterizada por ser normativamente ineficaz” (2018, p. 51).
Infere-se que como racismo é uma forma sistemática de discriminação, que inclusive leva ao racismo estrutural, no caso da discriminação racial, eram equivocadas as teses que buscavam separar os crimes de racismo e discriminação para que no caso de um suposto crime de “discriminação” pudesse operar a “prescrição”. O preconceito enquanto ideia que pode não ser não exteriorizada pode ser que nunca venha se manifestar no mundo dos fatos e ter repercussão para o Direito. No momento em que se exterioriza e se torna prática, torna-se tipo punível para a Lei 7.716/89. Na mesma esteira pode-se citar o entendimento do também jurista Adilson Moreira sobre o conceito de discriminação e o dano causado ao bem jurídico que visa a ser tutelado pelo Direito, como exposto na obra Racismo Recreativo (2019, pp. 43-44) , a partir de estigmas que são formados pelo preconceito que levam à discriminação e ao racismo.
Logo, não há como não concluir que a discriminação também é espécie do gênero racismo, bem como o preconceito uma vez externado, porque o preconceito embora possa se caracterizar por ideias construídas muitas ao longo do tempo como afirma Silvio de Almeida ao citar exemplos associados a certos estereótipos em específico que estão no imaginário popular, dependendo da carga pejorativa, levam à discriminação e ao racismo. Logo, são imprescritíveis.
Voltando ao PL em análise, o legislador propõe a tipificação a partir da conduta de discriminar pessoas intersexo no artigo 1º, além de outras que caracterizariam intersexofobia como nas diversas formas citadas de violência com ênfase na violência hospitalar, sem no entanto enquadrá-las expressamente como forma de racismo em seu sentido amplo. Tal omissão pode acarretar novos debates acerca da prescritibilidade ou não da intersexofobia A Lei Caó é aplicada para criminalização da homotransfobia (incluindo intersexofobia) pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de junho de 2019 até supressão de lacuna legislativa conforme procedência da ADO 26-DF e do MI 4733-DF?
Conforme se verifica do julgamento do Mandado de Injunção nº 4733 que reconheceu a mora do Congresso Nacional para legislar sobre a criminalização da discriminação homofóbica e transfóbica, e também citando a intersexofobia, dando prazo para que o Congresso o fizesse, importa salientar que a aplicação da Lei nº 7.716/89 não resolveu de início o problema, mesmo com a procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, ambas julgadas no dia 13 de junho de 2019. Isso porque ambas reconheceram a aplicação da Lei nº 7.716/89, mas, por exemplo, silenciou inicialmente quanto a aplicação do artigo 140, § 3º do Código Penal Brasileiro que trata de injúria racial. Tal questão só foi consertada com o advento da Lei nº 14.532/2023 que equiparou o crime de injúria qualificada ao de racismo, aplicável aos casos de injúria homofóbica e transfóbica.
  Na ADO 28-DF temos a ampliação do conceito de racismo, para que se observe a dimensão social que a terminologia pode alcançar para se manter aplicando o entendimento da imprescritibilidade aos crimes homotransfóbicos e de intersexofobia, haja vista que deverá o legislador estar atento à necessidade de especificar com mais precisão o conceito de racismo, para inclusão de outros grupos historicamente oprimidos por meio de processos de patologização de seus corpos, de orientação sexual, identidade de gênero e características fenotípicas, muito semelhante à prática do racismo científico desenvolvido no século XIX para inferiorizar pessoas negras, judias e não-brancas em geral.
“Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Dias Toffoli, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por maioria e nessa extensão, julgá-la procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para: a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5ºda Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTI+; b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º,da Constituição c/c o art. 12-H, “caput”, da Lei nº 9.868/99; d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5ºda Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário doHC82.424/RS (casoEllwanger), na medida em que tais condutas importam em atos desegregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTI+, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, seja, ainda, porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão; ee) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente), que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente. Em seguida, por maioria, fixaram-se as seguintes teses: 1.Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);
(...)
3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não subscreveu as teses propostas. Não participaram, justificadamente, da fixação da tese os Ministros Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Brasília, 13 de junho de 2019. ADO 26 – DF Celso de Mello. (Grifo nosso)
  No que tange ao Mandado de Injunção 4733-DF, há inclusão das pessoas intersexo na proteção dada pela Lei Caó de forma temporária.
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. MANDADO DE INJUNÇÃO. DEVER DO ESTADO DE CRIMINALIZAR AS CONDUTAS ATENTATÓRIAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. HOMOTRANSFOBIA. DISCRIMINAÇÃO INCONSTITUCIONAL. OMISSÃO DO CONGRESSO NACIONAL. MANDADO DE INJUNÇÃOJULGADO PROCEDENTE.1. É atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero. 2. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação sexual.3. À luz dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil é parte, dessume-se da leitura do texto da Carta de 1988 um mandado constitucional de criminalização no que pertine a toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. 4. A omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar que o sofrimento e a violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersex é tolerada, como se uma pessoa não fosse digna de viver em igualdade. A Constituição não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe. 5. A discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, tal como qualquer forma de discriminação, é nefasta, porque retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor. 6. Mandado de injunção julgado procedente, para (i) reconhecer amora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Dias Toffoli, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em conhecer do mandado de injunção, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não admitia a via mandamental. Por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para (i) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e; (ii) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei 7.716/1989 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, nos termos do voto do Relator, vencidos, em menor extensão, os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli(Presidente) e o Ministro Marco Aurélio, que julgava inadequada a via mandamental. Brasília, 13 de junho de 2019. Relator Ministro EDSON FACHIN. MI 4733- DF
Portanto, mesmo tendo havido a extensão do crime de racismo, os tipos penais previstos na Lei 7.716/89 às práticas discriminatórias homotransfóbicas, há a necessidade da redação de uma legislação própria, ainda que a nova legislação possa estender, confirmando a aplicação da Lei Caó às práticas discriminatórias de intersexofobia. No entanto é da natureza do Mandado de Injunção e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão provocar justamente o Poder Judiciário para que determine, no caso, ao Congresso Nacional para que legisle sobre matéria que tenha se omitido e que seja de natureza constitucional, como no caso. A rpovidência encontra amparo nos artigos 1º, I, 3, I e IV, 4º, II e 5º da CF/88 o direito à igualdade, dignidade da pessoa humana, a não - discriminação.
  O que deve ser observado é que durante a aplicação da Lei Caó aos crimes de discriminação por homotransfobia (incluindo a intersexofobia) que se equiparam à Lei Caó, tais práticas não são alcançáveis pela prescrição, ou seja, são imprescritíveis tais condutas.
Qualquer nova proposta legislativa que não desse nova redação à Lei Caó para incluir os crimes de intersexofobia, como os de homotransfobia, entenderia o legislador pela imprescritiblidade? No caso do Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de 2024 de autoria do Deputado Federal Clodoaldo Magalhães pelo Partido Verde – Pernambuco verifica-se que se trata de um PL que não visa alterar a Lei Caó para especificação da intersexofobia, mas uma legislação autônoma, embora possa em parte atender a expectativa de suprir a omissão legislativa que foi objeto do ADO 28-DF e MI 4733-DF, atendendo necessidades específicas das pessoas intersexos. Mas é interessante que quaisquer projetos de leis que visem sobre a questão da intersexofobia, da homofobia e transfobia coloquem as práticas criminosas como espécie do gênero racismo para que não se volte à antiga discussão já fomentada no Caso Ellwanger sobre a possível prescritibilidade da discriminação. Pode ser aproveitado para essa finalidade o conceito de racismo, na sua dimensão social como visto na decisão da ADO 28-DF, podendo se trabalhar pela extensão do conceito de racismo social. .
Por fim, observa-se uma falha na redação do Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de2024, que visa criminalizar a intersexofobia, uma omissão no artigo 2º das pena aplicável às condutas ali tipificadas, tendo se demorado mais na violência hospitalar em si, conforme os artigos 3º e 4º da proposta.

3. CONCLUSÃO
Ex Positis, infere-se que o Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de 2024 de autoria do Deputado Federal Clodoaldo Magalhães pelo Partido Verde – Pernambuco não fere a nenhum dispositivo constitucional, estando em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana e atendendo sobretudo ao direito congênito à autodeterminação de gênero.
Quanto à questão doutrinária, o presente parecer coloca como sugestão a inclusão expressa no Projeto de Lei, em análise, das práticas caracterizadas como intersexofobia como espécie do gênero racismo para que os crimes praticados não sejam alcançados pela prescrição, sendo os agentes beneficiados pela extinção da punibilidade sem antes responderem por suas práticas que violam o direito de exisitir plenamente das pessoas intersexo em conformidade com a própria autodeterminação de gênero, buscando uma melhor caracterização do conceito de racismo social.
Requer ainda a correção da redação do Projeto de Lei para redigir pena aplicável às condutas tipificadas em seu artigo 2º, tendo sido omisso sem querer, o legislador proponente.
Infere-se pela recepção da Indicação nº 23/2024, sendo favorável ao Projeto de Lei nº 2.921, de 17 de julho de 2024, por suprir no que tange às pessoas intersexuais a omissão legislativa já verificada na análise da ADO 26-DF e MI 4733-DF, devendo ser remetido este documento, após aprovação pela Comissão de Direito Constitucional e pela sessão plenária da Casa de Montezuma ao Gabinete do Deputado Federal Clodoaldo Magalhães do Partido Verde – Pernambuco, bem como aos integrantes da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados Federais (CSAÚDE) para fins de conhecimento e sugestão das medidas que podem ser adotadas. Também recomenda que este parecer seja encaminhado para a Associação Brasileira de Intersexos.
É o parecer, salvo melhor juízo.
João Pessoa, 25 de março de 2025
Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó
Membro Efetivo – OAB/PB 11.151

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O DIREITO CONGÊNITO DOS POTIGUARA À PRÓPRIA TERRA



Na segunda-feira, 09.06.2025, o trânsito da BR 101 foi interrompido no litoral norte paraibano, na altura do KM24, tendo como protagonistas os Potiguara e os Tabajara, organizados pela Mobilização Nacional dos Povos Indígenas no Brasil em protesto, segundo o Jornal A União[1], ao PDL nº nº 717/2024, de autoria do Senador Espiridião Amin (PP-SC) que segundo a ementa pretende sustar “o art. 2º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências, o Decreto nº 12.289, de 4 de dezembro de 2024, que homologa a demarcação administrativa da terra indígena Toldo Imbu, localizada no Município de Abelardo Luz, Estado de Santa Catarina, e o Decreto nº 12.290, de 4 de dezembro de 2024, que homologa a demarcação administrativa da terra indígena Morro dos Cavalos, localizada no Município de Palhoça, Estado de Santa Catarina.”

Ocorre que existem pelo menos dois Projetos de Decretos Legislativos para “desmarcar” o território Potiguara. Assim, o Projeto de Decreto Legislativo nº 544/2024 de autoria da Deputada Federal Caroline de Toni (PL-SC) dispõe que pretende sustar “os efeitos dos Decretos nº 12.288, nº 12.289 e nº 12.290 de 4 de dezembro de 2024, que dispõem sobre a homologação da demarcação das Terras Indígenas Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba, Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, em Santa Catarina.” Nesse mesmo diapasão segue o PDL nº 520/2024, de autoria da Deputada Federal Daniela Reinehr (PL-SC) que também pretende sustar “os efeitos dos Decretos números 12.288, 12.290 e 12.289 de 04 de dezembro de 2024, que dispõe sobre a demarcação das Terras Indígenas Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba, Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, em Santa Catarina.” O Decreto (presidencial) que diz respeito às terras paraibanas dos Potiguara é o de nº 12.888, de 04 de dezembro de 2024, que assim dispõe:

“Homologa a demarcação administrativa da terra indígena Potiguara de Monte-Mor, localizada nos Municípios de Rio Tinto e de Marcação, Estado da Paraíba.

     O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 19, § 1º, da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, e no art. 5º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996,

DECRETA:

     Art. 1º Fica homologada a demarcação administrativa, promovida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas - Funai, da terra indígena denominada Potiguara de Monte- Mor, localizada nos Municípios de Rio Tinto e de Marcação, Estado da Paraíba, destinada à posse permanente do grupo indígena Potiguara, com superfície de sete mil quinhentos e trinta hectares cinquenta e nove ares e sessenta e nove centiares e perímetro de cinquenta e sete mil novecentos e setenta metros e sessenta e três centímetros, a seguir descrita.”

Parlamentares que desconhecem história da Paraíba e as áreas habitadas pelos Potiguara, pretendem sustar ato do Poder Executivo que trata da demarcação das terras dos povos originários paraibanos. Parlamentares que pelo visto desconhecem a história dos povos originários de todo país e pretendem sustar todos os atos do Poder Executivo a respeito. Mas o território Potiguara é rico em titânio. Nenhuma demarcação é realizada sem um prévio estudo antropológico. Além da falta de conhecimento e da "cultura" desses povos, da forma de autodeterminação e pertencimento, desconhecem, embora não pudessem, a Teoria do Indigenato. A maltratada Teoria do Indigenato que já foi desrespeitada inclusive pela gestão do PT.

 O discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU em fins de setembro de 2019 está de acordo com a política eugenista contra nossos indígenas. Nenhum "índio" terá mais um palmo de terra e não estamos somente falando do fim da Teoria do Indigenato ou do Fato Indígena ou de Marco Temporal, mas por trás do discurso meramente assimilacionista, em se apresentar uma mulher indígena fenotipicamente aceitável como indígena (Kalapalo), estamos nos referindo a uma profunda ignorância e falta de respeito à autodeterminação dos povos originários que não se baseia em características estritamente fenotípicas e estereotipadas.

O pertencimento a cada etnia fica a critério da autodeterminação de cada povo. Porém, essa política infame não começa com Bolsonaro. Com a política desenvolvimentista do Governo Dilma e o interesse de latifundiários em terras originalmente indígenas, passou a se adotar como política de governo somente a Teoria do Fato Indígena, conforme se verifica na Portaria AGU n.º 303, de 16 de julho de 2012, após décadas de políticas assimilacionistas incentivadas pelo Estado brasileiro, com “vista grossa” para as violações de direitos desses povos pelo capital do latifúndio. Há também o interesse no apagamento do protagonismo dos movimentos sociais indígenas na luta pela reconquista de seus territórios como extensão de um direito da personalidade desses povos, que poderão continuar com sua identidade étnica e cultural.

Os Potiguara estão situados no mesmo lugar desde a chegada dos colonizadores há 525 anos. A bibliografia e os documentos sobre a história do atual Estado da Paraíba evidenciam, desde o descobrimento do Brasil, a presença dos Potiguara no litoral paraibano e, mais notadamente, na Baía da Traição. (CARDOSO et alli: 2012, p. 15)[2]. De acordo com Rodrigo Siqueira Ferreira (2014, p. 89), a UNI coordenou a coleta de assinaturas em todo o país, que resultou na Proposta de Emenda Popular n.º 40, que sofreu forte oposição de grupos de latifundiários, representantes de multinacionais na Constituinte, com o argumento de que o reconhecimento da autodeterminação, a partir do conceito de nação e de direitos territoriais dos povos indígenas, fere a soberania nacional.

Por fim, foi parcialmente recepcionada a Proposta de Emenda Popular n.º 40, que resultou nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Importante frisar que Rodrigo Siqueira Ferreira (2014, p. 88)[3] cita os Potiguara como participantes dos debates do Congresso Nacional, ao longo dos 22 meses em que durou a Constituinte. O discurso entre as diversas nações indígenas foi unificado e contou com o protagonismo da União das Nações Indígenas, fundada em 1980, segundo Ferreira. Os Potiguara trazem a resistência de sua ancestralidade que por muito tempo assombrou os portugueses e com certeza juntamente com outras lideranças comprometidas com a Teoria do Indigenato, não irão aceitar essa nova tentativa de esbulho de suas terras.

Laura Berquó

Advogada. Professora Adjunta da UFPB. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Ex-Conselheira Estadual de Direitos Humanos – Paraíba. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros –IAB.

Fontes:

1. CARDOSO, Thiago Mota; GUIMARÃES, Gabriella Casimiro (Orgs.). Etnomapeamento dos Potiguara da Paraíba. Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012 (Série Experiências Indígenas, n. 2).

2. FERREIRA, Rodrigo Siqueira. Vinte e cinco anos de cidadania e direitos constitucionais. O Movimento Indígena da luta por autodeterminação na Constituinte (1987/88) ao embate político no Congresso Nacional contra as tentativas de redução dos direitos originários sobre as terras. In: Mari yé bó eshé. Organizadores: Frank Coe, Joe Marçal, Wilma Mendonça e Álvaro Tukano. 2 ed. Karioka, Porto Alegre, 2014.

3. PARAÍBA. A UNIÃO. https://www.auniao.pb.gov.br/noticias/caderno_paraiba/povos-protestam-por-demarcacoes. Acessado em 11.06.2025