PREZAD@S, APRESENTO PARECER DE MINHA AUTORIA PELA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS. APROVADO EM SESSÃO PLENÁRIA.
Indicação 2023 Projeto de Lei 2.822/2002
Cuida de proposta de doação de órgãos duplos por pessoas presas para fins de remição da pena.
Indicação proposta pela Confreira Dra Ana Arruti
EMENTA: PROJETO DE LEI 2.822/2022. AUTORIA DO SENADOR STYVENSON VALENTIM (PODEMOS/RN). DOAÇÃO DE ÓRGAOS DUPLOS DE PESSOAS PRESAS MEDIANTE REMIÇÃO DE PENA. PROPÕE ALTERAR O ART. 9º DA LEI 9.434/1997 E O ART. 126 DA LEI 7.210/1984. INDICAÇÃO ORIGINÁRIA COMISSÃO DE CRIMINOLOGIA DO IAB. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. VÍCIO DE CONSENTIMENTO. TORTURA. IMPOSSIBILIDADE EM CONFORMIDADE COM O ART.7º DO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS
1. RELATÓRIO
A Comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros foi provocada para emissão de parecer sobre o Projeto de Lei (PL) nº 2.822/2022, conforme indicação originária da Comissão de Criminologia, tendo como confreira indicante a Dra Ana Arruti.
Cuida ainda a Indicação nº (xx) de análise legal do Projeto de Lei nº 2.822/2022 de autoria do Senador Styvenson Valentim (PODEMOS/RN), para que pessoas que estejam presas e sentenciadas possam ter remição de até 50% da pena total e cumprimento do restante em regime aberto, caso se torne com este propósito doador de órgãos duplos (rins e pulmão). A exigência imposta pelo Projeto de Lei em referência é que a pessoa presa já tenha cumprido pelo menos 20% da pena.
Ainda informa a referida indicação que o PL 2.822/2022 está apensado a outras propostas, citando, por exemplo o Projeto nº 1.321/2003, que no mesmo viés, propõe que “ o presidiário que se inscreva como doador vivo de órgãos , partes do corpo humano e tecidos para fins terapêuticos requerer redução de pena após a aprovação do procedimento cirúrgico”.
A justificativa do Senador Styvenson Valentim, sobre a necessidade do PL 2.822/2022, deve-se ao debate transnacional do tema e que encontraria arrimo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.
O referido PL viria a modificar o artigo 9º da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997 e a Lei de Execuções Penais.
É o Relatório, passo a opinar.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Com fincas nos artigo 3º, II do Estatuto do Instituto dos Advogados Brasileiros, artigo 69 do Regimento Interno da Casa de Montezuma, bem como da Resolução 03/2018, passa a discorrer sobre a fundamentação jurídica que embasará a conclusão do presente parecer.
A legislação brasileira trata da possibilidade de doação de órgãos duplos no artigo 9º, da Lei nº 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, não havendo nenhum impedimento que pessoas presas possam doar dentro das condições estabelecidas, bem como a presa grávida poderá doar voluntariamente sangue placentário e do cordão umbilical até o momento do parto, conforme o art. 9º- A da referida lei. Em momento algum, exclui a pessoa presa de atender espontaneamente ao princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio constitucional da solidariedade.
Ocorre, que em caso de doação, não poderá estar na expectativa de remição de pena pelas razões que serão expostas mais adiante, por entender-se que tal prática possa configurar torturacontra a pessoa apenada e essa autorização de doação de órgãos ser viciada por razões estranhasao senso de solidariedade.
Em caso de aprovação do referido PL 2.822/2022 e caso não sofra nenhuma modificação em nenhuma das Casas legislativas, em conformidade com a redação original, o art. 9º da Lei 9.434/1997 passará a ter seguinte redação:
“Art. 9º ......................................................................................
...................................................................................................
§ 9º É facultado ao condenado, de forma livre e voluntária, devidamente acompanhado por advogado, na presença do Juiz da execução penal e após ouvido o Ministério Público, doar órgão duplo nos termos da lei, em caráter humanitário, para fins de remição na forma da Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984.”
Igualmente os artigos 13, parágrafo único e 14 do Código Civil Brasileiro trazem a possibilidade de doação de órgãos e disposição do próprio corpo por qualquer pessoa, inclusive sem exclusão das pessoas presas, frisando que essa doação é sempre com o caráter gratuito, amparada no princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da solidariedade, justamente para evitar possíveis comercializações ou “trocas” entre doador e donatário/receptor.
A doação de um órgão duplo causa um quadro irreversível, razão pela qual, ninguém deve ser compelido a fazê-lo, não podendo ser assim constrangido, conforme inteligência do artigo 15 do Código Civil Brasileiro e tratando a legislação específica, assim como a lei substantiva civil da gratuidade do ato, sem nenhum tipo de favorecimento ou benesses.
O Projeto de Lei nº 2.822/2002 ignora que além de não haver impedimentos para que pessoas presas possam doar órgãos e disporem do próprio corpo, tal decisão é sempre motivada pelo sentimento de solidariedade, cujo princípio da solidariedade é abarcado pelo Estatuto Básico, art. 3º, I. Também despreza o referido projeto que a “barganha” com a pessoa presa para que a partir de um ato que deve ser voluntário e gratuito, possa se livrar do constrangimento do cárcere e das mazelas do sistema prisional brasileiro fere justamente o princípio constitucional da pessoa humana, que é fundamento da República Federativa do Brasil.
Tal projeto de lei segue a corrente de que presos são pessoas improdutivas, sem dignidade, reincidentes poder de escolha e que devem compensar a sociedade pelos males causados, nem que seja com disposição dócil de seus corpos, justificando um verdadeiro e aberrante extrativismo humano. Tal proposta caracteriza a ideia estigmatizada pela Teoria do Conflito, em especial a Teoria do Labelling Approach, e tal projeto seria uma “redenção” à pessoa presa que já traz um estigma do qual se deve buscar a remissão da sociedade (no sentido de perdão).
A remição proposta pelo Projeto de Lei nº 2.822/2022 alteraria da seguinte forma a Lei nº 7.210, de 11 de Julho de 1984, a célebre Lei de Execuções Penais, veja-se:
“Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado
ou semiaberto poderá remir, por trabalho, por estudo ou por doação de órgão duplo, parte do tempo de execução da pena.
...................................................................................................
§ 9º No caso da doação de órgão duplo, o condenado deverá
ter cumprido 20% (vinte por cento) da pena para poder fazer uso da remição.
§ 10. Uma vez realizados todos os procedimentos necessários para fins da doação, ela será custeada pelo Estado e realizada nos termos da Lei.
§ 11. O condenado que realizar a doação fará jus a uma redução de 50% (cinquenta por cento) da pena total imposta, devendo cumprir o restante da pena em regime aberto, com as condições a serem definidas pelo Juízo da execução
§12. A remição de pena por doação de órgão duplo não se aplica na hipótese de reincidência em crime hediondo.”
Como verificado in albis, o referido projeto reforça a Teoria do Conflito com a exclusão da possibilidade de remição em caso de doação de órgãos duplos por pessoas reincidentes em crimes hediondos, fazendo assim acepção de doadores, e se contrapondo à própria justificativa do projeto que é atender aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (por parte
do donatário/receptor) e da solidariedade (por parte do doador pessoa presa). Permanece assim aprática do etiquetamento social e não ressocialização de pessoas presas.
No que tange à prática de tortura em viciar o consentimento de pessoas presas para fins de doação de órgãos, tanto o art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como art.1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 04, de 23 de maio de 1989 e promulgado pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991) não apresentam rol taxativo das práticas consideradas como tortura.
“Art. 5º “Ninguém será submetido à tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”
“Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.”
Ademais, o art. 2º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes clarifica que o rol descrito no artigo primeiro se apresenta em “numerus apertus’.
Art.2º. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringirqualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.
Seguindo o raciocínio que a prática proposta pelo Projeto de Lei nº 2.822/2002 configura tortura em tese, cita-se justamente o disposto no artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos foi adotado pela XXI Sessão da Assembleia -Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966 (ratificado pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992), que corrobora com a tese em questão:
“Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas.” (Grifo nosso)
Ora, qualquer pessoa privada de liberdade não tem como consentir livremente sobre qualquer proposta que venha a acenar com a possibilidade de liberdade. Outrossim, não há como não dizer que essas pessoas presas não serão submetidas a “experiências médicas ou científicas”, uma vez que o risco de rejeição de órgãos pelo receptor, ainda que do mesmo tipo sanguíneo é de alta probabilidade, não prevendo inclusive a possibilidade de remição ainda que haja incompatibilidade pelo pretenso donatário/receptor.
Pelo Princípio da Indivisibilidade dos Direitos Humanos não se pode separar a proteção dos direitos da personalidade dos demais direitos proclamados por Tratados, Declarações ou ainda pelo costume internacional aplicados em matéria de Direitos Humanos. Outrossim, é necessário entender o conceito de vício de consentimento, razão pela qual cita-se oportunamente San Tiago Dantas.
O Projeto de Lei nº 2.822/2022 também entra na seara do Direito Civil, uma vez que a doação de órgãos duplos, ou tecidos, ou sangue, etc, tem a natureza jurídica de de negócio jurídico bilateral unilateral gratuito, isto é, um tipo inominado que se assemelha ao contrato de doação. Por tais razões, não há como concordar com doação de órgãos duplos mediante qualquer tipo de “barganha” como a proposta pelo referido projeto de lei, porque qualquer negócio jurídico bilateral unilateral gratuito importa em liberalidade daquele que faz, sem a espera de contraprestação. Cita-se por exemplo o Contrato de Barriga Solidária que é negócio jurídico bilateral unilateral gratuito e atípico, em que não é devida nenhuma contraprestação ao que gera em seu ventre o bebê. O mesmo entendimento aplica-se aos casos de doação de órgãos, sangue, etc, podendo se falar nesse caso em atendimento ao princípio constitucional da solidariedade.
Por se tratar a doação de órgãos de pessoas vivas de negócio jurídico bilateral unilateral gratuito, o consentimento não pode ser viciado sob pena de invalidade do próprio negócio jurídico. Não pode haver máculas à declaração de vontade. Conforme ensinamentos do civilista San Tiago Dantas ia vontade é a substância do ato jurídico, senão vejamos:
“Muito comumente os atos jurídicos apresentam defeitos que os tornam anuláveis, os quais têm a sua sede na declaração de vontade. A vontade é a substância do ato jurídico. De modo que, se a sua manifestação não corresponde ao que o agente verdadeiramente quer, ou, se o querer do agente estava travado, em consequência de uma causa qualquer capaz de tolher o seu arbítrio, o ato se apresenta viciado e a conseqüência é que a parte por ele prejudicada, ou a própria parte, cuja vontade não estava sã, pode promover a sua anulação pelos meios estabelecidos na lei.” (grifo nosso)
Ora, em casos irreversíveis como a doação de um dos órgãos públicos, corre o risco do Estado sofrer demandas judiciais com fins indenizatórios, haja vista que a doação de órgão não pode ser desfeita. Segundo ainda San Tiago Dantas sobre vício de consentimento:
A conseqüência, então, destes vícios e defeitos que o ato jurídico pode apresentar quanto à vontade é torná-lo anulável. Nem sempre a repristinação é possível, ou porque foram praticados atos que, em si próprios, não podem ser modificados nos seus efeitos, principalmente, ou porque as coisas que se desligaram de umpatrimônio para outro, já não podem ser mais repostas no seu estado antigo e, assim, em vez de uma repristinação, tem lugar uma indenização; compõe-se pecuniariamente o prejuízo que houve. (grifo nosso)
Ainda, analisando San Tiago Dantas sobre os vícios do consentimento ou da vontade, o caso de doação de um dos órgãos duplos por pessoas privadas de liberdade e já sentenciadas, aplicando-se os ensinamentos do grande civilista ao entendimento aqui apresentado, a vontade estaria “perturbada”, manifestada sob condições de medo, haja vista a condição de vulnerabilidade da pessoa presa que emite manifestação de vontade, podendo caracterizar coação, já que sua autodeterminação encontra-se bastante reduzida.
“Classificam-se os defeitos jurídicos da vontade em dois grandes grupos. No primeiro grupo se colocam os casos em que há discordância entre a vontade e a declaração de vontade; em que se não apresenta defeito algum, na vontade, delineou-se esta claramente na consciência do agente, mas, no momento de exprimir a vontade. O agente, por erro, ou propositadamente, exprimiu coisa diversa daquela que estava no seu ânimo. Este é o primeiro grupo de defeitos que consistem na discordância entre a vontade e a declaração. O segundo grupo que se chama o grupo dos vícios, reúne os casos em que a própria vontade está perturbada, de tal maneira que, ou positivamente o agente não quis aquilo que manifestou ou, então, foi levado a definir a sua vontade num sentido diverso daquele para o qual se orientaria, se não interferissem as causas do vício .
(...)
Veja-se agora os vícios da vontade. O primeiro a considerar-se é a coação que é a deliberação debaixo do medo. Estando submetida a uma ameaça ou a uma violência atual, a pessoa decide-se a enunciar uma vontade que, na verdade, não corresponde ao seu querer. E a coação.
Tem-se aí a vontade mesma viciada; não é a declaração, pois não há a menor discordância entre a vontade e a declaração; a pessoa declara realmente aquilo que resolveu declarar, mas apenas resolveu em conseqüência de uma ameaça que foi mais forte que a sua própria liberdade.”
Micheletti e Lamy ao mencionarem os princípios das Regras de Mandela informam que há uma prejuízo do direito à autodeterminação de pessoas presas, justamente por sua condição de pessoa privada de liberdade, fundamentando a tese de que isso implica no livre consentimento da pessoa presa para quaisquer atos que possam estar relacionados à possibilidades invasivas de remição da pena, como o proposto pelo Projeto de Lei nº 2.822/2022
“Dentre seus princípios, tem-se que “todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido à tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância”. Ademais, explicita-se que o encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade.”ii (grifo nosso)
A interpretação sistemática utilizando-se Direito Civil, Direitos Humanos e Direito Constitucional não é despicienda, uma vez que também na análise da aplicação de normas que visem coibir violação de Direitos Humanos, aplica-se a norma mais favorável à pessoa humana, conforme citação da Magistrada Flávia Piovesan sobre entendimento do Ministro Celso de Mello:
“Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico
básico (tal como aquele proclamado no art. 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana (...).”
O Pacto dos Direitos Civis e Políticos trouxe justamente como novidade, segundo Konder Comparato, a equiparação à tortura de experimentações médico-científicas sem o consentimento da pessoa ou ainda sem as devidas informações dos riscos e consequências.
“A grande novidade da proibição constante do artigo 7º do Pacto consiste em assimilar à tortura , ou aos tratamentos penais cruéis, desumanos e degradantes, a submissão de alguém , sem o seu consentimento, a experimentações médico-científicas. É claro que essa disposição refere-se, antes de mais nada, às práticas atrozes perpetradas pelos Estados totalitários, notadamente o Estado nazista, em seus campos de concentração. Mas ele abrange também pesquisas médicas e cientificas de alto poder ofensivo, levadas a efeito em alguns Estados Democráticos, sem que pacientes ou a população soubessem do que se tratava”iii. P. 305
Apesar do entendimento sobre “consentimento” não especificar os vícios da manifestação de vontade, não há que se falar em derrogação do dispositivo previsto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos. No caso em questão, não há possibilidade de derrogar o previsto no artigo 7º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, em favor do Projeto de Lei 2.822/2022 ,mesmo em nome da aplicação de uma norma supostamente mais favorável, conforme possa fazer crer o referido projeto, haja vista evocar as expressões remição, solidariedade e dignidade da pessoa humana, haja vista que segue-se o entendimento da assaz citada Flávia Piovesan, uma vez que não é autorizada derrogação, ainda que temporária da proibição de tortura.
“Apenas, excepcionalmente, o Pacto dos Direitos Civis e Políticos admite a derrogação temporária dos direitos que enuncia. À luz de seu art. 4º, a derrogação temporária dos direitos fica condicionada aos estritos limites impostos pela decretação de estado de emergência, ficando proibida qualquer medida discriminatória fundada em raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. Ao mesmo tempo, o Pacto estabelece direitos inderrogáveis, como o direito à vida, a proibição da tortura e de qualquer forma de tratamento cruel, desumano ou degradante, a proibição da escravidão e da servidão, o direito de não ser preso por inadimplemento contratual, o direito de ser reconhecido como pessoa, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, dentre outros. Isto é, nada pode justificar a suspensão de tais direitos, seja ameaça ou estado de guerra, perigo público, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos permite ainda limitações em relação a determinados direitos, quando necessárias à segurança nacional ou à ordem pública (ex.: arts. 21 e 22)”
Considerando ainda o perfil da população carcerária atualmente no Brasil, pode-se ainda dizer que o referido Projeto de Lei nº 2.822/2022 irá recair sobretudo sobre a população negra do país (pretos e pardos), que em virtude do racismo estrutural e institucional também se vê alijada de uma boa qualidade na prestação de serviços de saúde, em que não se consideram especificidade de saúde da população negra, não tratando o referido processo inclusive da assistência médica que deve ser dada aos doadores em virtude do quadro irreversível que se forma com a doação de um órgão duplo (no caso, pulmão ou rim). Também pode-se dizer que é um Projeto de lei racista, classista e aporofóbico, haja vista que a maior parte da população carcerária no Brasil tem o perfil a seguir:
“As prisões no Brasil: espaços cada vez mais dedicados à população negra do país
Os dados sobre encarceramentos relativos à raça/cor disponibilizados pelo 14º Anuário Brasileiro indicam alta concentração entre a população negra. Em 2019, os negros representaram 66,7% da população carcerária, enquanto a população não negra (considerados brancos, amarelos e indígenas, segundo a classificação adotada pelo IBGE) representou 33,3%. Isso significa que, para cada não negro preso no Brasil em 2019, dois negros foram presos. E um pouco mais que o dobro, quando comparado aos brancos.
Ainda que o maior encarceramento de pessoas negras não seja propriamente uma novidade, ao se analisar a série histórica do dado raça/cor dos presos no Brasil, fica explicito que, a cada ano, esse grupo representa uma fração maior do total de pessoas presas. Se, em 2005, os negros representavam 58,4% do total de presos, enquanto os brancos eram 39,8%, em 2019, essa proporção chegou a 66,7% de negros e 32,3% de brancos. A taxa de variação nesse período mostra o crescimento de 377,7% na população carcerária identificada pela raça/cor negra, valor bem superior à variação para os presos brancos, que foi de 239,5%. Ou seja, as prisões no país se reafirmam, ano a ano, como um lugar para negros. No Brasil, se prende cada vez mais; no entanto, sobretudo, cada vez mais pessoas negras. Existe, dessa forma, forte desigualdade racial no sistema prisional, materializada não somente nos números e dados apresentados, como pode também ser percebida concretamente na maior severidade de tratamento e sanções punitivas direcionadas aos negros. Aliadas a isso, as chances diferenciais e restritas aos negros na sociedade, associadas às condições de pobreza que enfrentam no cotidiano, fazem com que se tornem os alvos preferenciais das políticas de extermínio e encarceramento do país.”iv
Infere-se que o Projeto de Lei nº 2.822/2022 deve ser rejeitado por configurar a possibilidade de prática de tortura, violação do princípio da dignidade da pessoa humana e ir contra a possibilidade de autodeterminação, viciando o consentimento da pessoa presa. Outrossim, tal proposta esbarra inclusive nos direitos da personalidade previstos no art. 15 do Código Civil Brasileiro.
Nesse mesmo diapasão deve ser rejeitada a referida proposta legislativa por ferir tratados internacionais de Direitos Humanos do qual o Brasil é signatário e ratificado pelo Congresso Nacional, a saber: Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 1966.
3. CONCLUSÃO
Ex Positis, infere-se que o Projeto de Lei nº 2.822/2022 deve ser rejeitado por configurar a possibilidade de prática de tortura, experimento científico, violação do princípio da dignidade da pessoa humana, atenta contra a possibilidade de autodeterminação e direitos da personalidade, viciando o consentimento da pessoa presa.
Por outro lado, não há nenhuma proibição legal que impeça da pessoa presa dispor e doar órgãos duplos, desde que seja por mera liberalidade, dentro do princípio constitucional e familiar da solidariedade, desde que as razões sejam estranhas ao Projeto de Lei nº 2.822/2022.
Requer, portanto, a rejeição da proposta e que cópia do parecer seja remetido ao Relator do Projeto de Lei nº 2.822/2002, Senador Otto Alencar (PSD-BA) e para a Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal.
É o parecer, salvo melhor juízo.
João Pessoa, 26 de junho de 2023
Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó Membro Efetivo – OAB/PB 11.151
i DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Vol. 1, 1979.
ii MICHELETTI FELÍCIO, Érick Vanderlei e LAMY, Marcelo. O direito à saúde no ambiente prisional brasileiro: reflexões sobre o Dever Ser e o Ser. ABRACRIM, 2022.
iii COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 12 d. Saraiva: São Paulo, 2019.
iv VARGAS, Tatiane. https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50418 Acessado em 26.06.2023