sábado, 13 de setembro de 2025

O VOTO FEMININO: PEÇA DE 1890 DE AUTORIA DE JOSEFINA ÁLVARES DE AZEVEDO


 O VOTO FEMININO: PEÇA DE 1890 DE AUTORIA DE JOSEFINA ÁLVARES DE AZEVEDO


Em 1890, a feminista paraibana Josefina Álvares de Azevedo publicou a comédia O Voto Feminino, peça teatral de apenas 1 ato. As personagens são: a protagonista Inês, que conseguiu convencer sua filha Esmeralda e sua criada Joaquina a lutarem pelo voto feminino, pelo direito de ocuparem cargos públicos, propondo uma nova divisão sexual do trabalho. Inês antevê que um dia as mulheres serão iguais aos homens perante a lei. O antagonista é o seu marido, o ex-Conselheiro Anastácio, que busca apoio no seu genro Rafael, no criado do Doutor Florêncio, Antônio (noivo de Joaquina) contra a luta das mulheres pelo direito ao voto, temendo perder espaço político, poder e claro, temendo uma nova divisão sexual do trabalho. No final, os homens vencem.

Josefina Álvares de Azevedo denuncia na referida peça a apropriação intelectual do trabalho de mulheres de políticos por seus maridos. Sobre a época, a referida comédia integra a primeira parte da obra da autora A Mulher Moderna. Josefina Álvares de Azevedo, no texto que antecede à peça teatral, reclama, assim como reclamou Nísia Floresta anteriormente, que a mulher tem direito à instrução e que possui as mesmas condições que os homens de ocuparem cargos públicos. Ainda, reclama que dos 21 "conselheiros" da Assembleia Constituinte de 1890, 2/3 se manifestaram contra o direito ao voto feminino. Josefina busca refutar todas as alegações trazidas na época para desmerecer o direito das mulheres ao voto.

As mulheres no Brasil inteiro só puderam (facultativamente) votar e serem votadas com o Decreto nº 21.076 de 24 de fevereiro de 1932. O Código Eleitoral de 1932, em seu artigo 2º dizia “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Codigo”

Mas as mulheres analfabetas só puderam votar em 1985 com a Emenda Constitucional nº 25 ao texto de 1967. E para finalizar, quero aqui mencionar outras duas grandes figuras paraibanas na defesa do voto feminino: a primeira advogada paraibana Catharina Moura, que fez seu discurso em 1913 defendendo o voto feminino (o acervo do IHGP se encontra com os textos rasgados do jornal A União que publicou o discurso), antes mesmo de Bertha Lutz, e o grande feminista e intelectual paraibano Carlos Dias Fernandes que era um defensor dos direitos das mulheres participarem ativamente da vida política.

Laura Berquó

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 4



OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 4


Prezados leitores, antes de darmos prosseguimento com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833, precisamos trazer algumas correções referentes à publicação anterior com as contribuições de Padre Vitor Pereira, sacerdote Greco Católica-Melquita, Doutor em Direito pela UERJ e meu confrade do Instituto dos Advogados Brasileiros.

 Como informado, uma das curiosidades da pesquisa decorreu da necessidade de verificar a informação dos antigos de que os padrinhos seriam tutores de órfãos. Segundo Antônio de Souza Gouveia (1891):  

“Órphão, no sentido jurídico, é aquelle que não tendo a idade cumprida de 21 annos, ficou sem pai e está sob a administração do Juiz de Órphãos”. 

Órfão, portanto, era o menor de 21 anos que não tinha PAI. No caso das crianças expostas, estas conseguiam a maioridade antes, aos 20 anos de idade. Em ambos os casos, de expostos e de ingênuos órfãos, a nomeação de tutores ocorria ao completarem 07 anos, conforme as Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, Livro 4º, Título 102 e o Alvará de 31 de Janeiro de 1775, segundo ainda Gouveia.

O que acontece é que nas Ordenações Filipinas havia um rol de pessoas que não poderiam ser tutoras. Os padrinhos só poderiam ser nomeados tutores por testamento e não por direito previsto nas Ordenações. Uma das pessoas que não poderiam ser tutoras eram os religiosos, conforme exposto no Livro IV, Título CII.

Com base nisso, trouxemos um registro de um dos batizados em que o Reverendo Vigário da matriz foi o padrinho da párvula Maria, de seis meses de idade, em que a mãe Vicencia Moreira da Ressurreição, apesar de casada, batizou sozinha sua filha, tida por natural, pelo não reconhecimento da paternidade pelo marido João Elias:


“Aos quinze de agosto do anno de mil oitocentos e trinta e três, nesta matriz de Nossa Senhora das Neves, de minha licença o Padre Antônio Lourenço de Almeida, batizou solenemente a párvula Maria, com idade de seis mezes, filha natural de Vicencia Moreira da Ressurreição, cazada, com João Elias, o qual retirou-se da sua companhia. Foi padrinho o Reverendo Vigário desta Matriz. E para constar mandei lançar este assento que no Archivo desta matriz achei por lançar, e o assigno, por estar completamente autorizado.”


Informei que o Vigário, apesar de padrinho, não poderia ser nomeado tutor conforme visto nas Ordenações Filipinas, porque os religiosos não podiam ser tutores. Conforme explicações dadas pelo Padre Vitor Pereira, o fato de ser padre não tirava a possibilidade de alguém ser tutor. Segundo Padre Vitor Pereira:

“Quando as Ordenações falam em RELIGIOSOS, não estão a se referir a ministros religiosos em geral. E sim aos membros de institutos religiosos que fazem ao menos os votos de pobreza, obediência e castidade, tais como freis e monges.”

E prossegue:

“Os padres chamados diocesanos ou seculares não são religiosos nesse sentido e poderiam ser normalmente tutores. Muito provavelmente o Vigário era padre secular, logo, poderia ser tutor sim.”

Assim umas das edições das Ordenações Filipinas copilada por Cândido Mendes de Almeida traz a distinção entre clérigos e religiosos:

“Os Presbytheros e mais Clérigos são admitidos à Tutoria legítima querendo, o que devem declarar no praso de quatro meses.”

Portanto, religiosos são aqueles que pertencem às Ordens religiosas: sacramentinos, jesuítas, benediditinos, franciscanos etc. Excluindo portanto, os sacerdotes seculares.

Segundo ainda Padre Vitor, “os religiosos padeciam de morte ficta. Eram como se fossem mortos civilmente. Mas os padres seculares não eram religiosos”.

Feitos os importantes esclarecimentos com as elucidações de Padre Vitor Pereira, aguardemos a continuidade da série com enfoque na condição das crianças nascidas escravizadas.


Autora: Laura Berquó. Membro Efetivo das Comissões de Direitos Humanos, Liberdade Religiosa, Constitucional, Família e Sucessões.

Fontes:


Conversa com Padre Vítor Pereira sobre o conteúdo do OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 3

Ordenações Filipinas recopiladas por por Candido Mendes de Almeida, 1870.

GOUVEIA, Antônio de Souza. Direito dos Órphãos ou Apontamentos sobre o Processo Orphonológico. Parahyba: Typ. E Lith. a Vapôr Manoel Henriques, 1891






OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 3

 




OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 3


Prezados leitores, prosseguimos com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833. Apesar do foco ser as crianças que já nasciam escravizadas, hoje trataremos das crianças nascidas livres (ingênuas) com foco na orfandade e escolha de tutores. A orfandade de crianças que nasciam escravizadas merece um tópico próprio. Também falaremos da miscigenação da sociedade local da época e a relação com classe e gênero.

 A escolha do ano de 1833 não foi aleatória, mas devido ao fato de que os livros anteriores ao ano de 1833 foram perdidos. A Paróquia em questão nasce com a própria fundação da cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), no final do século XVI. Conforme já exposto, foram um total de 297 batizados, sendo 296 de crianças e 01 de uma mulher adulta escravizada. Das 296 crianças, 27 nasceram escravizadas.

Uma das curiosidades da pesquisa decorreu da necessidade de verificar a informação de que os padrinhos seriam tutores de órfãos. Quem eram os órfãos para o Direito? Segundo Antônio de Souza Gouveia (1891): “Órphão, no sentido jurídico, é aquelle que não tendo a idade cumprida de 21 annos, ficou sem pai e está sob a administração do Juiz de Órphãos”. 

Órfão, portanto, era o menor de 21 anos que não tinha PAI. No caso das crianças expostas, estas conseguiam a maioridade antes, aos 20 anos de idade. Em ambos os casos, de expostos e de ingênuos órfãos, a nomeação de tutores ocorria ao completarem 07 anos, conforme as Ordenações Filipinas, Livro 1º, Título 88, Livro 4º, Título 102 e o Alvará de 31 de Janeiro de 1775, segundo ainda Gouveia.

No caso, segundo as Ordenações Filipinas, pessoas escravizadas não poderiam ser tutoras. Também as mulheres só poderiam ser tutoras se avós ou mãe do órfão, haja vista que órfão no sentido jurídico era quem não tinha pai, genitor (pai falecido ou incógnito). Também não podiam ser nomeados tutores os “acatholicos” no período em análise, segundo Gouveia, porém não encontrei ainda a fonte em que ele se baseia.

Segundo as Ordenações Filipinas, Livro IV, Título CII, não podiam ser tutores:

 “que per Direito o póde ser, que não seja menor de vinte e cinco annos, ou sandeu ou prodigo, ou inimigo do orfão, ou pobre ao tempo do fallecimento do defunto, ou scravo, ou Infame, ou Religioso, ou impedido de algum outro impedimento perpetuo”.


Embora as mães e avós pudessem ser tutoras, a mãe perdia essa condição caso viesse a contrair novas núpcias (mesmo em caso de nova viuvez). Mais adiante, em 1859, temos o Aviso nº 312 de 20 de outubro de 1859, a partir de Consulta feita ao então Ministério dos Negócios da Justiça que dizia que deveria se nomear tutor a menor, filho de pai incógnito se a mãe não fosse de “bons costumes”:



“AVISO N.º 312 DE 20 DE OUTUBRO DE 1859.

- Declara que a menor, filha de pai incognito, e que tem mãi viva, he orphã em face das Leis do Paiz.2ª Secção. Ministerio dos Negocios da Justiça. Rio de Janeiro em 20 de Outubro de 1859.

Ilmo. e Exm. Sr. - Tendo essa Presidencia, em officio de 30 de Abril ultimo, consultado á este Ministerio se a menor, filha de pai incognito, e que tem mãi viva, deve ser considerada Orphã em face das nossas Leis, por isso que se deu, no termo de Santarem, o facto de ter o Vigario da vara recusado celebrar, sem o concurso do Juiz de Orphãos, o casamento da menor de dezesete annos Rosa Maria filha natural de Candida Maria da Conceição e de pai desconhecido;

Sua Magestade o Imperador, Conformando-se com a opinião do Consultor interino dos Negocios da Justiça e com o parecer do Conselheiro Procurador da Corôa, Manda declarar a V.Ex. que, negando as nossas Leis expressamente o patrio poder ás mãis, o filho de pai incognito acha-se comprehendido na jurisdicção orphanologica e conseguintemente debaixo da

inspecção directa do Juiz de Orphãos, que póde nomear-lhe tutor ou curador, quando sua mãi não tenha bons costumes, dando-o até á soldada á simile dos outros Orphãos e dos expostos, He claro, pois, que o casamento da menor não poderia ser effectuado sem licença do Juiz, á vista da Ord. Liv. 1º. Tit. 88 xx 19 e 27 e Aviso nº 70 de 18 de Julho de 1846.

Deos Guarde a V. Ex. - João Lustosa da Cunha Paranaguá - Sr. Presidente da Provincia do Pará”



E os padrinhos? Diferente das lendas que ouvimos, padrinho não tinha preferência para ser nomeado tutor em casos de orfandade (morte do pai) dos afilhados. Tal nomeação só poderia ser feita por testamento. Nos demais casos em que não havia previsão testamentária, caberia ao Juiz de Órphãos decidir os pedidos de tutela. Talvez de fato, os padrinhos exercessem algum tipo de tutela informal. Mas não havia nenhum privilégio legal por ser padrinho, a não ser que houvesse designação por testamento feito por pai ou avô.

Na cidade da Parahyba (atual João Pessoa) em 1833 temos as seguintes conclusões com base nos dados coletados, considerando que como as madrinhas não poderiam ser nomeadas tutoras, sua figura era dispensável muitas vezes no momento do batizado. Hoje trataremos somente das crianças que eram livres, chamadas ingênuas, porque o tratamento dado às crianças escravizadas será abordado na continuidade da série:


Meninos brancos com padrinho e madrinha: 30

Meninos negros livres com padrinho e madrinha: 2

Meninos indígenas livres com padrinho e madrinha: 4

Meninas indígenas livres com padrinho e madrinha: 1

Meninos pardos livres com padrinho e madrinha: 18

Meninas brancas com padrinho e madrinha:30

Meninas negras livres com padrinho e madrinha: 04

Meninos pardos livres com padrinho e madrinha negros (“crioulos”): 2

Meninas pardas livres com padrinho e madrinha: 23


Total: 114


Quando resolvemos separar as crianças livres que somente possuíam padrinhos (que seriam em tese aptos para serem nomeados tutores) temos:

Meninos brancos somente com padrinho: 31

Meninos indígenas somente com padrinho: 01

Meninos pardos livres somente com padrinho: 19

Meninos negros livres somente com padrinho: 09

Menino “cafuzo” livre somente com padrinho: 01

Meninas brancas somente com padrinhos: 32

Meninas indígenas somente com padrinho: 01

Meninas negras livres somente com padrinho: 04

Meninas pardas livres somente com padrinho: 12

Menina “cafuza” livre somente com padrinho: 01


Total: 111


Quanto aos batismos de crianças livres por procuração temos:


Crianças batizadas com madrinhas por procuração: 12

Crianças batizadas com padrinhos por procuração: 03


Citemos 01 caso de batismo por procuração de duas meninas gêmeas:


Roza e Apolinária, em 06.10.1833, filhas naturais de Francisca Xavier dos Santos, pardas. Padrinhos: Sargento-mor Joze Thomas Henriques (Procurador: Padre Antônio da Trindade Antunes Meira) e Donna Maria Izabel do Rozário (Procurador: Francisco Fernandes Lima).


Desse total de 15 crianças, 09 eram crianças pardas livres, 05 eram crianças brancas e 01 era criança negra livre.

Curiosamente consta 01 assentamento sem validade e 01 menino branco sem padrinho ou madrinha. Das meninas brancas expostas (não houve registro de meninos expostos em 1833) temos:

Meninas expostas (todas brancas) com padrinho e madrinha: 01

Meninas expostas (todas brancas) somente com padrinho: 02

Conclusão: 265 batizados, sendo aproximadamente 114 crianças somente com padrinhos. Como dito, a figura da madrinha não teria tanta relevância, haja vista que somente as avós e mães podiam ser tutoras. As madrinhas jamais seriam nomeadas tutoras por testamento ou poderiam se candidatar a esta condição de seus afilhados órfãos.

Ademais, as mulheres que não tivessem “boa conduta”, desrespeitassem os “bons costumes” não poderiam ser tutoras de seus filhos. Mas qual era o padrão de comportamento sexual verificado nas mulheres da cidade da Parahyba em 1833? 

As mulheres brancas abastadas casavam e eram chamadas de “Donna”. As mulheres brancas pobres viviam em união estável ou tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, ainda que filhos naturais, com a exceção de uma mulher branca casada que o marido não reconheceu a paternidade:


“Aos quinze de agosto do anno de mil oitocentos e trinta e três, nesta matriz de Nossa Senhora das Neves, de minha licença o Padre Antônio Lourenço de Almeida, batizou solenemente a párvula Maria, com idade de seis mezes, filha natural de Vicencia Moreira da Ressurreição, cazada, com João Elias, o qual retirou-se da sua companhia. Foi padrinho o Reverendo Vigário desta Matriz. E para constar mandei lançar este assento que no Archivo desta matriz achei por lançar, e o assigno, por estar completamente autorizado.”


O curioso é que o Vigário foi o padrinho, mas não poderia ser nomeado tutor conforme visto nas Ordenações Filipinas. 

Já as mulheres negras e pardas fossem livres, forras ou escravizadas, nem todas tinham a paternidade de seus filhos reconhecida. Vejamos dois casos:

Victorino, batizado em 09.09.1833, aos 02 meses, filho natural da “crioula” Maria, viúva, escrava de Antonio Batista de Carvalho. Padrinhos: José Antônio do Nascimento (pardo livre solteiro) e Anna Barbosa das Neves (parda livre solteira).

Francisco, batizado em 20.10.1833, aos 46 dias, filho natural de Anna Joaquina da Cruz, parda livre. Padrinho Silvestre Rodrigues de Carvalho (pardo “captivo”).

 Mas havia casos de casamentos entre mulheres negras livres (também pardas) com homens escravizados e também homens negros e pardos livres, já exposto nos outros artigos da série.

As mulheres brancas pobres, que eram a maioria, viviam menos uniões interraciais, diferentemente dos homens brancos pobres que se uniam a mulheres negras e pardas livres As famílias brancas casadas não apresentaram uniões interraciais. No caso das mulheres brancas pobres temos os seguintes dados sobre uniões interraciais, observando no entanto que essas uniões não ocorreram com homens negros livres ou escravizados, nem indígenas.

Menino filho de mãe branca e pai pardo livre: 01

Menina filha de mãe branca e pai pardo livre: 02

Menino filho de mãe branca e pai negro livre: 00

Menina filha de mãe branca e pai negro livre: 00

Menino filho de mãe branca e pai indígena: 00

Menina filha de mãe branca e pai indígena: 00


Citemos um dos casos:


Feliciana, batizada em 21.08.1833, aos 03 meses de idade, filha natural de Izabel Maria Francisca (branca) e Joaquim Mendes Joze dos Santos (pardo), tendo como padrinhos Manoel de Goes (pardo livre) e Eugenia das Neves (preta livre)


Infere-se que as mulheres brancas pobres não tinham tanto acesso a uniões interraciais, bem como as mulheres brancas casadas, haja vista que só se casavam com brancos. Os homens brancos pobres apresentam um outro padrão de relacionamento, podendo se relacionar tanto com mulheres brancas pobres, negras livres e pardas livres pobres. O fato de viverem em concubinato por si só não tirava dessas mulheres o direito de serem tutoras de seus filhos em caso de orfandade, bem como o fato de não terem a paternidade de seus filhos não reconhecida (pai incógnito). 

Também se verifica uma maior solidão das mulheres negras e pardas, fossem livres ou não, no exercício da maternidade, haja vista que com exceção de mulheres negras casadas, muitas não tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, embora houvesse muitas uniões entre homens brancos pobres e mulheres negras e pardas livres (com a respectiva filiação de seus filhos reconhecida), fazendo a cidade da Parahyba uma cidade miscigenada.

Fontes:

Livro de Registro de Batizados do ano de 1833 da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves da antiga cidade da Parahyba (atualmente João Pessoa);

GOUVEIA, Antônio de Souza. Direito dos Órphãos ou Apontamentos sobre o Processo Orphonológico. Parahyba: Typ. E Lith. a Vapôr Manoel Henriques, 1891

Ordenações Filipinas (1603), Livro IV, Título CII.

Aviso nº 312 de 20 de outubro de 1859https://www.ciespi.org.br/site/collections/document/2573



terça-feira, 9 de setembro de 2025

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 2



 

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 2


Prezados leitores, prosseguimos com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833, com foco nas crianças que já nasciam escravizadas. A escolha do ano de 1833 não foi aleatória, mas devido ao fato de que os livros anteriores ao ano de 1833 foram perdidos. A Paróquia em questão nasce com a própria fundação da cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), no final do século XVI.

Hoje falaremos das crianças batizadas em perigo de vida: ingênuas e escravizadas. Ingênuas eram as crianças que nasciam livres e as crianças escravizadas, portanto, não recebiam essa denominação.  O conceito de orfandade também era interessante e deve receber um texto à parte. Bem como aqueles que poderiam ser tutores dos ingênuos. A questão das crianças escravizadas órfãs será tratada em outra oportunidade à parte também pelas especificidades dadas pela lei da época. Retomemos ao ponto.

Comecemos pelo levantamento feito:

Total de Batizados: 297

Crianças batizadas: 296

Adultos batizados: 1

Crianças batizadas que nasciam escravizadas: 27


Constam que dos 27 batismos de crianças que nasciam escravizadas, houve dois batizados de 02 meninas (uma delas não informa a idade) em de “perigo de vida”, tendo sido batizadas pelo próprio ‘senhor’ (e mesmo senhor) de suas mães. 

Em 18.03.1833, aos 4 meses, a párvula Manoella, filha natural de Joanna, “escrava de Jozé Vicente Torres”, batizada em casa em perigo de vida por Jozé Vicente Torres, branco e casado.

Maria, (sem informar a idade), em 1º.09.1833, “filha natural de Roza Crioula, escrava de Jozé Vicente Torres” e batizada em perigo de vida por este.


O caso de Maria é interessante, porque não informa a idade. Deduzimos que seja criança, porque no caso do único registro de adultos batizados escravizados, há a referência `a idade:


Izabel, “escrava adulta”, em 07.04.1833, “preta da Costa de Sabará com idade que aparenta ter 28 anos”, era “escrava do Tenente Manoel de Medeiros Furtado”. Foram padrinhos Manoel de Goés (preto forro casado) e Clara, “preta escrava de Dona Josefa Rodrigues Chaves”.



Os demais casos de crianças batizadas em perigo de vida se referem às crianças não escravizadas, com os seguintes dados:

Crianças Brancas: 12

Crianças Brancas Expostas (todas meninas): 3

Crianças pardas livres: 7

Crianças negras (pretas) livres: 2

Total: 24 crianças

Somando com as 2 meninas escravizadas e batizadas em perigo de vida, temos um total de 26 crianças, que retrata o índice de mortalidade infantil. Em um total de 296 batizados de crianças, 26 crianças foram batizadas em perigo de vida, correspondendo a uma percentagem de  quase 9 %. Um índice de mortalidade infantil altíssimo comparado ao ano de 2023 em que a cada 1000 nascimentos com vida, morrem aproximadamente 12,3. No caso, na antiga cidade da Parahyba, a aproximadamente 100 nascimentos com vidas, morriam cerca de 9 crianças aproximadamente, com base no ano de 1833.

Entre as crianças filhas de pais indígenas ou de uniões interraciais entre pessoas indígenas e pessoas negras não houve registros de que tenham ocorrido batizados em perigo de vida no ano de 1833. As crianças indígenas da nação Potiguara (Baía da Traição), sendo um total de 2 crianças “cafuzas”, todas livres (itens 8 e 9). Observe-se ainda que a maioria das crianças indígenas eram filhas legítimas, porque os pais eram casados, com raras exceções como os párvulos dos itens 5, 6 e 7:

Antônio, aos 04 “mezes”, batizado em 29.04.1833, filho legítimo de Thomas Lourenço Pereira e Escolástica Maria do Nascimento, ambos “índios de nação”. Foram padrinhos João do Rego Moura e Manoella Josefa da Conceição.

Fabiano, 70 dias, batizado em 06.04.1833, filho natural da “índia” Rita Maria de Sena, tendo como padrinho Manoel Teixeira da Costa.

Antônio, 46 dias, data do batizado não anotada, filho natural de Leandra Maria, ambos indígenas. Batizado pelo Padre Antônio Lourenço de Almeida e foram padrinhos Luiz Soares e sua mulher Joaquina Francisca.

Antonia, batizada aos 03 meses em 07.04.1833, filha natural da “índia” Anna Thereza de Jesus, tendo como padrinhos Ignácio Lopes Monteiro (pardo livre) e Antonia Joaquina da Silva (“crioula livre”)

Thomás, batizado em 07.04.1833, sem idade apresentada, filho legítimo de João Joze, “preto da África” (“escravo do Padre Joze da Costa”) e da “índia” Catharina Maria da Conceição. Foi padrinho Maximiano bandeira (“crioulo livre”)

Maria, batizada aos 03 meses, em 14.04.1833, filha legítima de Cosme Rodrigues dos Santos (“índio de nação”) e da “parda livre” Antonia Roza Maria. O padrinho foi Cosme Damião das Chagas (“pardo livre”).


 Voltando às crianças batizadas em perigo de vida, trazemos mais 03 casos. Nessas últimas situações, o Padre celebrou o batizado dessas crianças, diferentemente das duas únicas meninas escravizadas que foram batizadas em perigo de vida pelo “senhor de suas mães” (item 1 e 2):


A criança Antônio, com 1 ano de idade, em 07.07.1833, batizado em perigo de vida pelo Padre Antônio Lourenço, filho natural de Severina de Jesus, “crioula forra”.

A párvula exposta Maria, branca, batizada solenemente em 11.05.1833, aos 13 dias de nascida, “em caza de Joze Joaquim da Lapa (padrinho) e Senhorinha Angélica da Lapa (filha do mesmo)”

O párvulo Florêncio, com 1 mês de idade, batizado em 21.04.1833, em perigo de vida, pelo Reverendo José Paulo Monteiro, filho legítimo dos pardos livres Manoel Alves de Barros e Roza de Lima.


Observe-se que no total foram 03 crianças expostas batizadas no ano de 1833, sendo todas meninas e brancas, e o mais interessante, todas em perigo de vida.  A Roda dos Expostos na antiga cidade da Parahyba funcionava na Igreja da Misericórdia, do século XVI, tendo sido trazida a Santa Casa da Misericórdia para a Paraíba em 02.07.1602 pelo grande investidor da cidade Duarte Gomes da Silveira. As Santas Casas da Misericórdia inauguram no Brasil o Terceiro Setor, ainda no século XVI.

As Rodas dos Expostos existiram oficialmente no Brasil, até o ano de 1927, conforme o Código de Menor (Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927.) daquele ano em seu artigo 15: “Art. 15. A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação directa, excluido o systema das rodas”.



Laura Berquó


Fontes:

Livro de Registro de Batizados do ano de 1833 da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves da antiga cidade da Parahyba (atualmente João Pessoa);

Decreto nº17.943-A, de 12 de outubro de 1927.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 1

 



OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 1


Há alguns anos, compareci ao arquivo da Arquidiocese da Paraíba, para verificar uma curiosidade pessoal “de ouvir dizer” como se verdade histórica fosse. Minha curiosidade era se realmente crianças que nasciam escravizadas tinham por “padrinhos/madrinhas” santos católicos no momento do batismo. E, como resposta à minha curiosidade, verifiquei que não procedia tal informação, ao mesmo tempo em que estava diante de novas informações com base em dados constantes dos livros dos registros de batismos.

A expressão "ingênuo" se refere às crianças nascidas livres, independentemente da cor da pele. Por isso, utilizamos a expressão “nascidos escravizados” em oposição à expressão "ingênuo". De 12.03.1833 a 19.11.1833, consta um total de 28 crianças nascidas escravizadas.

No arquivo fui informada de que podem apenas ser consultados os livros de registro de batismo da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves a partir do ano de 1833, devido ao fato de que a Paróquia é muito antiga (século XVI) e os livros de batismo anteriores ao referido ano simplesmente desapareceram. Pretendo tratar as informações colhidas limitadas ao Livro de Registro de Batismos do ano de 1833 em vários artigos a serem publicados. Mas comecemos com os dados gerais que foram colhidos.

A primeira observação a fazer é que consta um total de 297 batizados, sendo que 28 batizados foram referentes aos párvulos pretos ou pardos que nasciam escravizados, de mães escravizadas. Houve casos de mulheres negras de nação, porém forras, que tinham filhos com homens escravizados, mas, pelo fato de as mães serem livres, os filhos não nasciam escravizados. No caso das crianças filhas de mulheres pretas ou pardas escravizadas, tinham a paternidade reconhecida quando suas mães eram casadas com homens negros também escravizados. As demais mulheres pretas ou pardas que tinham filhos “naturais” - ou seja, filhos havidos fora do casamento, mas frutos de relações entre duas pessoas não impedidas de se casarem entre si - não tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, salvo exceções.

Parece óbvio não ter a paternidade reconhecida, haja vista não serem casadas. Mas não. As mulheres brancas pobres, pretas e pardas forras tinham em sua maioria a paternidade de seus filhos reconhecida sim, embora o comum, até mesmo para mulheres brancas, fosse o que chamamos hoje de "união estável". É interessante observar que, entre pessoas negras alforriadas, era mais comum o matrimônio e prole legítima, assim como entre os casais de origem indígena (Potiguaras da Baía da Traição) que batizavam seus filhos na Antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, os quais casavam e tinham sua prole “legítima”, conforme termo técnico utilizado até recentemente em Direito de Família para distinção da prole havida em virtude do casamento.

Outro aspecto interessante da Cidade da Paraíba do ano de 1833 é que temos uma cidade com relacionamentos inter-raciais entre as pessoas livres, sendo comum a união de homens brancos com mulheres pretas ou pardas alforriadas e mulheres brancas de origem pobre com homens pretos e pardos. Isso nos leva a questionar o porquê de mulheres negras escravizadas não terem o reconhecimento da paternidade de seus filhos pretos ou pardos que já nasciam escravizados, corroborando a tese já conhecida dos constantes estupros contra mulheres negras, haja vista que somente negras escravizadas casadas com negros escravizados tinham a prole com a paternidade reconhecida, diferentemente da população pobre, branca, mestiça ou preta alforriada, que, apesar de viver em união estável, tinha sua prole com o nome do genitor.

Citemos alguns casos, como o da párvula parda Benedita, que nasceu escravizada, filha natural de Catharina, natural de Angola e “pertencente” a João Nepomuceno Borges. Teve como padrinho Antonio Paz da Cunha e como madrinha “(nome ilegível no livro) de Almeida”. Era uma criança parda que nascia escravizada e batizada em 12.02.1833 aos 46 dias de nascida.

Citemos os exemplos das crianças negras escravizadas que tinham a paternidade reconhecida devido ao matrimônio dos pais, também escravizados:
1. Thimóteo, párvulo batizado em 03.03.1833 pelo Padre Joaquim Antônio Leitão, filho legítimo de Vicente de “Góvea” e Lourença Maria, ambos escravizados, tendo a criança como padrinhos Martinho Ribeiro e Maria Joaquina.

2. Joze, párvulo batizado em 30.09.1833, com 1 mês e 4 dias, filho legítimo de Marcelino Correia e de Maria Luíza, “crioulos captivos” do Senhorio do Engenho Gargaú, da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento (Santa Rita).

Observem que eram comuns batizados de crianças nascidas na Capital paraibana (Freguesia de Nossa Senhora das Neves), de Santa Rita (Freguesia de Nossa Senhora do Livramento), Ingá e Baía da Traição, áreas que hoje correspondem à Arquidiocese da Paraíba.

Também havia exceção à regra de filhos “naturais” entre pessoas escravizadas com o reconhecimento da paternidade, bem como de mulheres escravizadas unidas com homens livres:

3. Domingos, párvulo batizado em 21.02.1833 aos 03 meses pelo Padre Bartholomeu Alves de Almeida, filho natural de Joaquina “escrava” e João José Lopes. Foram padrinhos João Thomas e Maria do Bonfim.

4. Joze, párvulo batizado em 13.10.1833 aos 2 meses, filho natural de Maria Crioula ‘escrava” e Pedro Joze de Gandra. Os padrinhos foram Francisco Soares “Serino”,casado, e Mariana Crioula, solteira, “escrava” de Joze Joaquim Gonçalves.

Percebam que a maioria das crianças que nasciam escravizadas possuíam madrinhas, o que é uma exceção, haja vista que, como mulheres não podiam ser tutoras (com exceção das mães e avós), a figura da madrinha era apenas decorativa e dispensável. No próximo artigo falaremos das crianças que nasciam escravizadas e batizadas em perigo de vida e das características das crianças expostas. Em outros textos, também traremos dados sobre a figura da madrinha e do padrinho e as consequências civis de suas obrigações, o conceito de órfão e também o perfil das pessoas que tinham proles “legitimas”, isto é, quem casava nos idos de 1833 na antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves e as relações inter-raciais entre pessoas alforriadas e não escravizadas.

Laura Berquó


Fonte: Livro de Registro de Batismos do ano de 1833 da Freguesia de Nossa Senhora das Neves (cidade de João Pessoa, antiga cidade da Parahyba) da atual Arquidiocese da Paraíba.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

REPRISTINAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO COM A LEI DE 20 DE OUTUBRO DE 1821: O RETORNO ÀS LEIS DO BRASIL COLÔNIA


REPRISTINAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO COM A LEI DE 20 DE OUTUBRO DE 1821: O RETORNO ÀS LEIS DO BRASIL COLÔNIA



Hoje, 04.09, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro completa 83 anos. Em 2010 teve seu nome modificado para o atual, sendo denominada inicialmente de Lei de Introdução ao Direito Civil. De fato, a partir do artigo 7°, a legislação passa a tratar especificamente de Direito Internacional Privado, sendo os artigos antecedentes dedicados ao estudo do Direito Intertemporal. 

A legislação citada surge a partir do Estado Novo com a edição do Decreto-Lei n.° 4657, de 04.09.1942. Decretos-Leis passaram a ser utilizados a partir da Carta de 1937 (arts. 12, 13 e 72, b) não sendo mais possível a partir da Constituição Federal de 1988, recepcionando-se aqueles que não estivessem em desalinho com a nova ordem constitucional. Os decretos-leis, pela leitura do art. 12 da Carta de 1937, tinham natureza análoga à lei delegada. A LINDB serviu como solução- resposta à grande onda imigratória pós-Proclamação da República que durou até os anos 1930.

No caso, chamamos a atenção especificamente da previsão da possibilidade da utilização da repristinação, prevista no art. 2°, § 3°  da LINDB, mas em período histórico muito anterior. Embora rara, houve uma avalanche repristinatória no Direito brasileiro, sendo quiça, o primeiro caso de repristinação em 1823.

O grande criminalista pernambucano Anibal Bruno cita que houve a revogação temporária de penas cruéis como degredo, infâmia, tortura, dentre outras previstas no Livro V das Ordenações Filipinas com o advento das Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 10 de março de 1821, art. 12. As Bases eram o instrumento legal de natureza liberal que colocava fim na forma arbitrária e cruel de punições aos reinícolas. Houve, porém, a restauração das penas cruéis pela Lei de 20 de Outubro de 1823. O Brasil já era Império ao tempo da repristinação das Ordenações Filipinas que em matéria penal vigorou até o Código Criminal de 1830. 

O que chama a atenção é para o formato materialmente constitucional das Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa, com o respeito aos direitos individuais, como por exemplo a individualização da pena, excluindo a punição por infâmia para filhos e netos de criminosos. 

Ocorre que apesar de rara no ordenamento brasileiro, o que se viu com a Lei de 20 de outubro de 1821 foi um grande fenômeno repristinatório de leis como será mostrado no final. Mas no que tange às Bases, surge uma outra problematização.

Considerando que desde dezembro de 1816 o Brasil já tinha sido elevado à natureza de Reino Unido, podemos especular  que as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa foram a primeira Constituição brasileira, rompendo com uma proposta absolutista de Estado monárquico?


Não podemos. Porque as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa só entraram em vigor em todo território nacional em 8.6.1821, tendo sido La Pepa, a Constituição de Cádiz de 1812 a primeira, vigorando apenas 1 dia, publicada em 21.04.1821 e revogada em 22.04.1821 por Dom João VI, senão vejamos:


"Decreto de 22 de abril de 1821

Subindo hontem á Minha Real presença uma Representação, dizendo-se ser do Povo, por meio de uma Deputação formada dos Eleitores das Parochias, a qual Me assegurava, que o Povo exigia para Minha felicidade, e delle, que Eu Determinasse, que de hontem em diante este Meu Reino do Brazil fosse regido pela Constituição Hespanhola, Houve então por bem decretar, que essa. Constituição regesse até a chegada da Constituição, que sàbia e socegadamente estão fazendo as Côrtes convocadas na Minha muito nobre e leal Cidade de Lisboa: Observando-se porém hoje, que esta Representação era mandada fazer por homens mal intencionados, e que queriam a anarchia, e vendo  que o Meu Povo se conserva, como Eu lhe agradeço,. fiel ao Juramento que Eu com elIe de commum accordo prestamos na Praça do Rocio no dia 26 de Fevereiro do presente anno; Hei por bem determinar, decretar, e declarar por nullo todo o Acto feito hontem; e que o Governo Provisorio que fica. até a chegada da Constituição Portugueza, seja da forma que determina o outro Decreto, e Instrucções que Mando publicar com a mesma data deste, e que Meu filho o Princípe Real ha de cumprir e sustentar até chegar a mencionada Constituição Portugueza.

Palacio da Boa Vista aos 22 de Abril de 1821.

Com a rubrica de Sua Magestade."


Meses depois temos o Decreto de 8.6.1821 que instituiu as Bases:


"Tendo Eu adaptado, e jurado as Bases da Constituição Portugueza, para terem observancia neste Reino do Brazil, servindo provisoriamente de Constituição, na fórma que determinarem as Côrtes Geraes e Constituintes para os Reinos de Portugal e Algarves, pelo Seu Decreto de 9 de Março do corrente anno, e mandado já expedir as ordens necessarias ao Senado da Camara, Tribunaes e mais Estações desta Cidade e Camaras da Provincia, para todas as Autoridades Ecclesiasticas, Civis, Militares, e outros Empregados Publicos prestarem o mesmo juramento: E sendo necessario, que as sobreditas Bases da Constituição igualmente se jurem e publiquem nas mais Provincias deste Reino, para, depois e juradas e publicadas, ficarem todos sujeitos á sua observancia: Hei por bem que, pela Chancellaria desta Côrte e Reino do Brazil, se expeçam a todas as terras deste Reino este Decreto, e mencionadas Bases por exemplares impressos, para que sendo nellas publicadas na fórma ordinaria, e chegando á noticia de todos, se preste nas demais Provincias deste Reino o juramento como se prestou aqui. O Dr. Pedro Machado de Miranda Malheiros, do Conselho de El-Rei Meu Senhor e Pai, Desembargador do Paço, e Chanceller Mór da Côrte e Reino do Brazil o tenha assim entendido e faça executar. Paço em 8 de Junho de 1821.

Com a rubrica do Principe Regente.

Pedro Alvares Diniz."

Infere-se, portanto, que as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa são a segunda Constituição, sendo a de Cádiz ou Espanhola a primeira.

No que tange ao instituto da repristinação em si, segue o caso citado sobre repristinação de toda legislação anterior da Colônia pela Lei de 20 de outubro de 1823, em especial ao período anterior a 25.04.1821:


"Declara em vigor a legislação pela qual se regia o Brazil até 25 de Abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquella data em diante, e os decretos das Cortes Portuguezas que são especificados."


A escolha da data 25.04.1821 não é aleatória, mas coincide inclusive com o período colonial até o periodo em que Dom João VI retorna para Portugal em 26.04.1821.


Laura Berquó

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

IRMÃ EM LÉLIA GONZÁLEZ

 


Terminando a leitura de Lélia González, mais precisamente "Por um Feminismo Afro Latino Americano", e caindo a minha ficha do porquê algumas mulheres negras me chamam de irmã e não vejo a utilização da expressão por feministas brancas. Atribuia a expressão a regionalismos. Mas o fato é que Lélia ao tratar da indiferença no tratamento por feministas brancas liberais para com questões relacionadas ao racismo e violências sexistas sofridas por mulheres negras, há as que não sendo negras e/ou indígenas se aliam na luta antirracista e antissexista e por isso são chamadas de irmãs. 

De fato, fiquei sensibilizada. Não entendia que ser chamada de irmã era um reconhecimento e um convite para me integrar mais às questões. É preciso se ter dororidade (Vilma Piedade), além da sororidade. O Candomblé me possibilitou essa abertura de visão, a caminhar e a me propor um suicídio de classe, como posto por Amilcar Cabral.

Entender a expressão me fez compreender a importância do lugar de escuta proativo. É sobre acolher e ser acolhida numa dimensão política, de construção coletiva.  Iansã abençoe a todas!


Laura Berquó