terça-feira, 9 de setembro de 2025

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 2



 

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 2


Prezados leitores, prosseguimos com a nossa série sobre o perfil da sociedade da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, antiga Parahyba, atual cidade de João Pessoa, com base no Livro de Registros de Batizados do ano de 1833, com foco nas crianças que já nasciam escravizadas. A escolha do ano de 1833 não foi aleatória, mas devido ao fato de que os livros anteriores ao ano de 1833 foram perdidos. A Paróquia em questão nasce com a própria fundação da cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), no final do século XVI.

Hoje falaremos das crianças batizadas em perigo de vida: ingênuas e escravizadas. Ingênuas eram as crianças que nasciam livres e as crianças escravizadas, portanto, não recebiam essa denominação.  O conceito de orfandade também era interessante e deve receber um texto à parte. Bem como aqueles que poderiam ser tutores dos ingênuos. A questão das crianças escravizadas órfãs será tratada em outra oportunidade à parte também pelas especificidades dadas pela lei da época. Retomemos ao ponto.

Comecemos pelo levantamento feito:

Total de Batizados: 297

Crianças batizadas: 296

Adultos batizados: 1

Crianças batizadas que nasciam escravizadas: 27


Constam que dos 27 batismos de crianças que nasciam escravizadas, houve dois batizados de 02 meninas (uma delas não informa a idade) em de “perigo de vida”, tendo sido batizadas pelo próprio ‘senhor’ (e mesmo senhor) de suas mães. 

Em 18.03.1833, aos 4 meses, a párvula Manoella, filha natural de Joanna, “escrava de Jozé Vicente Torres”, batizada em casa em perigo de vida por Jozé Vicente Torres, branco e casado.

Maria, (sem informar a idade), em 1º.09.1833, “filha natural de Roza Crioula, escrava de Jozé Vicente Torres” e batizada em perigo de vida por este.


O caso de Maria é interessante, porque não informa a idade. Deduzimos que seja criança, porque no caso do único registro de adultos batizados escravizados, há a referência `a idade:


Izabel, “escrava adulta”, em 07.04.1833, “preta da Costa de Sabará com idade que aparenta ter 28 anos”, era “escrava do Tenente Manoel de Medeiros Furtado”. Foram padrinhos Manoel de Goés (preto forro casado) e Clara, “preta escrava de Dona Josefa Rodrigues Chaves”.



Os demais casos de crianças batizadas em perigo de vida se referem às crianças não escravizadas, com os seguintes dados:

Crianças Brancas: 12

Crianças Brancas Expostas (todas meninas): 3

Crianças pardas livres: 7

Crianças negras (pretas) livres: 2

Total: 24 crianças

Somando com as 2 meninas escravizadas e batizadas em perigo de vida, temos um total de 26 crianças, que retrata o índice de mortalidade infantil. Em um total de 296 batizados de crianças, 26 crianças foram batizadas em perigo de vida, correspondendo a uma percentagem de  quase 9 %. Um índice de mortalidade infantil altíssimo comparado ao ano de 2023 em que a cada 1000 nascimentos com vida, morrem aproximadamente 12,3. No caso, na antiga cidade da Parahyba, a aproximadamente 100 nascimentos com vidas, morriam cerca de 9 crianças aproximadamente, com base no ano de 1833.

Entre as crianças filhas de pais indígenas ou de uniões interraciais entre pessoas indígenas e pessoas negras não houve registros de que tenham ocorrido batizados em perigo de vida no ano de 1833. As crianças indígenas da nação Potiguara (Baía da Traição), sendo um total de 2 crianças “cafuzas”, todas livres (itens 8 e 9). Observe-se ainda que a maioria das crianças indígenas eram filhas legítimas, porque os pais eram casados, com raras exceções como os párvulos dos itens 5, 6 e 7:

Antônio, aos 04 “mezes”, batizado em 29.04.1833, filho legítimo de Thomas Lourenço Pereira e Escolástica Maria do Nascimento, ambos “índios de nação”. Foram padrinhos João do Rego Moura e Manoella Josefa da Conceição.

Fabiano, 70 dias, batizado em 06.04.1833, filho natural da “índia” Rita Maria de Sena, tendo como padrinho Manoel Teixeira da Costa.

Antônio, 46 dias, data do batizado não anotada, filho natural de Leandra Maria, ambos indígenas. Batizado pelo Padre Antônio Lourenço de Almeida e foram padrinhos Luiz Soares e sua mulher Joaquina Francisca.

Antonia, batizada aos 03 meses em 07.04.1833, filha natural da “índia” Anna Thereza de Jesus, tendo como padrinhos Ignácio Lopes Monteiro (pardo livre) e Antonia Joaquina da Silva (“crioula livre”)

Thomás, batizado em 07.04.1833, sem idade apresentada, filho legítimo de João Joze, “preto da África” (“escravo do Padre Joze da Costa”) e da “índia” Catharina Maria da Conceição. Foi padrinho Maximiano bandeira (“crioulo livre”)

Maria, batizada aos 03 meses, em 14.04.1833, filha legítima de Cosme Rodrigues dos Santos (“índio de nação”) e da “parda livre” Antonia Roza Maria. O padrinho foi Cosme Damião das Chagas (“pardo livre”).


 Voltando às crianças batizadas em perigo de vida, trazemos mais 03 casos. Nessas últimas situações, o Padre celebrou o batizado dessas crianças, diferentemente das duas únicas meninas escravizadas que foram batizadas em perigo de vida pelo “senhor de suas mães” (item 1 e 2):


A criança Antônio, com 1 ano de idade, em 07.07.1833, batizado em perigo de vida pelo Padre Antônio Lourenço, filho natural de Severina de Jesus, “crioula forra”.

A párvula exposta Maria, branca, batizada solenemente em 11.05.1833, aos 13 dias de nascida, “em caza de Joze Joaquim da Lapa (padrinho) e Senhorinha Angélica da Lapa (filha do mesmo)”

O párvulo Florêncio, com 1 mês de idade, batizado em 21.04.1833, em perigo de vida, pelo Reverendo José Paulo Monteiro, filho legítimo dos pardos livres Manoel Alves de Barros e Roza de Lima.


Observe-se que no total foram 03 crianças expostas batizadas no ano de 1833, sendo todas meninas e brancas, e o mais interessante, todas em perigo de vida.  A Roda dos Expostos na antiga cidade da Parahyba funcionava na Igreja da Misericórdia, do século XVI, tendo sido trazida a Santa Casa da Misericórdia para a Paraíba em 02.07.1602 pelo grande investidor da cidade Duarte Gomes da Silveira. As Santas Casas da Misericórdia inauguram no Brasil o Terceiro Setor, ainda no século XVI.

As Rodas dos Expostos existiram oficialmente no Brasil, até o ano de 1927, conforme o Código de Menor (Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927.) daquele ano em seu artigo 15: “Art. 15. A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação directa, excluido o systema das rodas”.



Laura Berquó


Fontes:

Livro de Registro de Batizados do ano de 1833 da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves da antiga cidade da Parahyba (atualmente João Pessoa);

Decreto nº17.943-A, de 12 de outubro de 1927.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 1

 



OS INGÊNUOS E NASCIDOS ESCRAVIZADOS NA ANTIGA PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS NEVES NO ANO DE 1833 – PARTE 1


Há alguns anos, compareci ao arquivo da Arquidiocese da Paraíba, para verificar uma curiosidade pessoal “de ouvir dizer” como se verdade histórica fosse. Minha curiosidade era se realmente crianças que nasciam escravizadas tinham por “padrinhos/madrinhas” santos católicos no momento do batismo. E, como resposta à minha curiosidade, verifiquei que não procedia tal informação, ao mesmo tempo em que estava diante de novas informações com base em dados constantes dos livros dos registros de batismos.

A expressão "ingênuo" se refere às crianças nascidas livres, independentemente da cor da pele. Por isso, utilizamos a expressão “nascidos escravizados” em oposição à expressão "ingênuo". De 12.03.1833 a 19.11.1833, consta um total de 28 crianças nascidas escravizadas.

No arquivo fui informada de que podem apenas ser consultados os livros de registro de batismo da antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves a partir do ano de 1833, devido ao fato de que a Paróquia é muito antiga (século XVI) e os livros de batismo anteriores ao referido ano simplesmente desapareceram. Pretendo tratar as informações colhidas limitadas ao Livro de Registro de Batismos do ano de 1833 em vários artigos a serem publicados. Mas comecemos com os dados gerais que foram colhidos.

A primeira observação a fazer é que consta um total de 297 batizados, sendo que 28 batizados foram referentes aos párvulos pretos ou pardos que nasciam escravizados, de mães escravizadas. Houve casos de mulheres negras de nação, porém forras, que tinham filhos com homens escravizados, mas, pelo fato de as mães serem livres, os filhos não nasciam escravizados. No caso das crianças filhas de mulheres pretas ou pardas escravizadas, tinham a paternidade reconhecida quando suas mães eram casadas com homens negros também escravizados. As demais mulheres pretas ou pardas que tinham filhos “naturais” - ou seja, filhos havidos fora do casamento, mas frutos de relações entre duas pessoas não impedidas de se casarem entre si - não tinham a paternidade de seus filhos reconhecida, salvo exceções.

Parece óbvio não ter a paternidade reconhecida, haja vista não serem casadas. Mas não. As mulheres brancas pobres, pretas e pardas forras tinham em sua maioria a paternidade de seus filhos reconhecida sim, embora o comum, até mesmo para mulheres brancas, fosse o que chamamos hoje de "união estável". É interessante observar que, entre pessoas negras alforriadas, era mais comum o matrimônio e prole legítima, assim como entre os casais de origem indígena (Potiguaras da Baía da Traição) que batizavam seus filhos na Antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves, os quais casavam e tinham sua prole “legítima”, conforme termo técnico utilizado até recentemente em Direito de Família para distinção da prole havida em virtude do casamento.

Outro aspecto interessante da Cidade da Paraíba do ano de 1833 é que temos uma cidade com relacionamentos inter-raciais entre as pessoas livres, sendo comum a união de homens brancos com mulheres pretas ou pardas alforriadas e mulheres brancas de origem pobre com homens pretos e pardos. Isso nos leva a questionar o porquê de mulheres negras escravizadas não terem o reconhecimento da paternidade de seus filhos pretos ou pardos que já nasciam escravizados, corroborando a tese já conhecida dos constantes estupros contra mulheres negras, haja vista que somente negras escravizadas casadas com negros escravizados tinham a prole com a paternidade reconhecida, diferentemente da população pobre, branca, mestiça ou preta alforriada, que, apesar de viver em união estável, tinha sua prole com o nome do genitor.

Citemos alguns casos, como o da párvula parda Benedita, que nasceu escravizada, filha natural de Catharina, natural de Angola e “pertencente” a João Nepomuceno Borges. Teve como padrinho Antonio Paz da Cunha e como madrinha “(nome ilegível no livro) de Almeida”. Era uma criança parda que nascia escravizada e batizada em 12.02.1833 aos 46 dias de nascida.

Citemos os exemplos das crianças negras escravizadas que tinham a paternidade reconhecida devido ao matrimônio dos pais, também escravizados:
1. Thimóteo, párvulo batizado em 03.03.1833 pelo Padre Joaquim Antônio Leitão, filho legítimo de Vicente de “Góvea” e Lourença Maria, ambos escravizados, tendo a criança como padrinhos Martinho Ribeiro e Maria Joaquina.

2. Joze, párvulo batizado em 30.09.1833, com 1 mês e 4 dias, filho legítimo de Marcelino Correia e de Maria Luíza, “crioulos captivos” do Senhorio do Engenho Gargaú, da Freguesia de Nossa Senhora do Livramento (Santa Rita).

Observem que eram comuns batizados de crianças nascidas na Capital paraibana (Freguesia de Nossa Senhora das Neves), de Santa Rita (Freguesia de Nossa Senhora do Livramento), Ingá e Baía da Traição, áreas que hoje correspondem à Arquidiocese da Paraíba.

Também havia exceção à regra de filhos “naturais” entre pessoas escravizadas com o reconhecimento da paternidade, bem como de mulheres escravizadas unidas com homens livres:

3. Domingos, párvulo batizado em 21.02.1833 aos 03 meses pelo Padre Bartholomeu Alves de Almeida, filho natural de Joaquina “escrava” e João José Lopes. Foram padrinhos João Thomas e Maria do Bonfim.

4. Joze, párvulo batizado em 13.10.1833 aos 2 meses, filho natural de Maria Crioula ‘escrava” e Pedro Joze de Gandra. Os padrinhos foram Francisco Soares “Serino”,casado, e Mariana Crioula, solteira, “escrava” de Joze Joaquim Gonçalves.

Percebam que a maioria das crianças que nasciam escravizadas possuíam madrinhas, o que é uma exceção, haja vista que, como mulheres não podiam ser tutoras (com exceção das mães e avós), a figura da madrinha era apenas decorativa e dispensável. No próximo artigo falaremos das crianças que nasciam escravizadas e batizadas em perigo de vida e das características das crianças expostas. Em outros textos, também traremos dados sobre a figura da madrinha e do padrinho e as consequências civis de suas obrigações, o conceito de órfão e também o perfil das pessoas que tinham proles “legitimas”, isto é, quem casava nos idos de 1833 na antiga Paróquia de Nossa Senhora das Neves e as relações inter-raciais entre pessoas alforriadas e não escravizadas.

Laura Berquó


Fonte: Livro de Registro de Batismos do ano de 1833 da Freguesia de Nossa Senhora das Neves (cidade de João Pessoa, antiga cidade da Parahyba) da atual Arquidiocese da Paraíba.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

REPRISTINAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO COM A LEI DE 20 DE OUTUBRO DE 1821: O RETORNO ÀS LEIS DO BRASIL COLÔNIA


REPRISTINAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO COM A LEI DE 20 DE OUTUBRO DE 1821: O RETORNO ÀS LEIS DO BRASIL COLÔNIA



Hoje, 04.09, a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro completa 83 anos. Em 2010 teve seu nome modificado para o atual, sendo denominada inicialmente de Lei de Introdução ao Direito Civil. De fato, a partir do artigo 7°, a legislação passa a tratar especificamente de Direito Internacional Privado, sendo os artigos antecedentes dedicados ao estudo do Direito Intertemporal. 

A legislação citada surge a partir do Estado Novo com a edição do Decreto-Lei n.° 4657, de 04.09.1942. Decretos-Leis passaram a ser utilizados a partir da Carta de 1937 (arts. 12, 13 e 72, b) não sendo mais possível a partir da Constituição Federal de 1988, recepcionando-se aqueles que não estivessem em desalinho com a nova ordem constitucional. Os decretos-leis, pela leitura do art. 12 da Carta de 1937, tinham natureza análoga à lei delegada. A LINDB serviu como solução- resposta à grande onda imigratória pós-Proclamação da República que durou até os anos 1930.

No caso, chamamos a atenção especificamente da previsão da possibilidade da utilização da repristinação, prevista no art. 2°, § 3°  da LINDB, mas em período histórico muito anterior. Embora rara, houve uma avalanche repristinatória no Direito brasileiro, sendo quiça, o primeiro caso de repristinação em 1823.

O grande criminalista pernambucano Anibal Bruno cita que houve a revogação temporária de penas cruéis como degredo, infâmia, tortura, dentre outras previstas no Livro V das Ordenações Filipinas com o advento das Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 10 de março de 1821, art. 12. As Bases eram o instrumento legal de natureza liberal que colocava fim na forma arbitrária e cruel de punições aos reinícolas. Houve, porém, a restauração das penas cruéis pela Lei de 20 de Outubro de 1823. O Brasil já era Império ao tempo da repristinação das Ordenações Filipinas que em matéria penal vigorou até o Código Criminal de 1830. 

O que chama a atenção é para o formato materialmente constitucional das Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa, com o respeito aos direitos individuais, como por exemplo a individualização da pena, excluindo a punição por infâmia para filhos e netos de criminosos. 

Ocorre que apesar de rara no ordenamento brasileiro, o que se viu com a Lei de 20 de outubro de 1821 foi um grande fenômeno repristinatório de leis como será mostrado no final. Mas no que tange às Bases, surge uma outra problematização.

Considerando que desde dezembro de 1816 o Brasil já tinha sido elevado à natureza de Reino Unido, podemos especular  que as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa foram a primeira Constituição brasileira, rompendo com uma proposta absolutista de Estado monárquico?


Não podemos. Porque as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa só entraram em vigor em todo território nacional em 8.6.1821, tendo sido La Pepa, a Constituição de Cádiz de 1812 a primeira, vigorando apenas 1 dia, publicada em 21.04.1821 e revogada em 22.04.1821 por Dom João VI, senão vejamos:


"Decreto de 22 de abril de 1821

Subindo hontem á Minha Real presença uma Representação, dizendo-se ser do Povo, por meio de uma Deputação formada dos Eleitores das Parochias, a qual Me assegurava, que o Povo exigia para Minha felicidade, e delle, que Eu Determinasse, que de hontem em diante este Meu Reino do Brazil fosse regido pela Constituição Hespanhola, Houve então por bem decretar, que essa. Constituição regesse até a chegada da Constituição, que sàbia e socegadamente estão fazendo as Côrtes convocadas na Minha muito nobre e leal Cidade de Lisboa: Observando-se porém hoje, que esta Representação era mandada fazer por homens mal intencionados, e que queriam a anarchia, e vendo  que o Meu Povo se conserva, como Eu lhe agradeço,. fiel ao Juramento que Eu com elIe de commum accordo prestamos na Praça do Rocio no dia 26 de Fevereiro do presente anno; Hei por bem determinar, decretar, e declarar por nullo todo o Acto feito hontem; e que o Governo Provisorio que fica. até a chegada da Constituição Portugueza, seja da forma que determina o outro Decreto, e Instrucções que Mando publicar com a mesma data deste, e que Meu filho o Princípe Real ha de cumprir e sustentar até chegar a mencionada Constituição Portugueza.

Palacio da Boa Vista aos 22 de Abril de 1821.

Com a rubrica de Sua Magestade."


Meses depois temos o Decreto de 8.6.1821 que instituiu as Bases:


"Tendo Eu adaptado, e jurado as Bases da Constituição Portugueza, para terem observancia neste Reino do Brazil, servindo provisoriamente de Constituição, na fórma que determinarem as Côrtes Geraes e Constituintes para os Reinos de Portugal e Algarves, pelo Seu Decreto de 9 de Março do corrente anno, e mandado já expedir as ordens necessarias ao Senado da Camara, Tribunaes e mais Estações desta Cidade e Camaras da Provincia, para todas as Autoridades Ecclesiasticas, Civis, Militares, e outros Empregados Publicos prestarem o mesmo juramento: E sendo necessario, que as sobreditas Bases da Constituição igualmente se jurem e publiquem nas mais Provincias deste Reino, para, depois e juradas e publicadas, ficarem todos sujeitos á sua observancia: Hei por bem que, pela Chancellaria desta Côrte e Reino do Brazil, se expeçam a todas as terras deste Reino este Decreto, e mencionadas Bases por exemplares impressos, para que sendo nellas publicadas na fórma ordinaria, e chegando á noticia de todos, se preste nas demais Provincias deste Reino o juramento como se prestou aqui. O Dr. Pedro Machado de Miranda Malheiros, do Conselho de El-Rei Meu Senhor e Pai, Desembargador do Paço, e Chanceller Mór da Côrte e Reino do Brazil o tenha assim entendido e faça executar. Paço em 8 de Junho de 1821.

Com a rubrica do Principe Regente.

Pedro Alvares Diniz."

Infere-se, portanto, que as Bases da Constituição Política da Monarquia Portuguesa são a segunda Constituição, sendo a de Cádiz ou Espanhola a primeira.

No que tange ao instituto da repristinação em si, segue o caso citado sobre repristinação de toda legislação anterior da Colônia pela Lei de 20 de outubro de 1823, em especial ao período anterior a 25.04.1821:


"Declara em vigor a legislação pela qual se regia o Brazil até 25 de Abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquella data em diante, e os decretos das Cortes Portuguezas que são especificados."


A escolha da data 25.04.1821 não é aleatória, mas coincide inclusive com o período colonial até o periodo em que Dom João VI retorna para Portugal em 26.04.1821.


Laura Berquó

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

IRMÃ EM LÉLIA GONZÁLEZ

 


Terminando a leitura de Lélia González, mais precisamente "Por um Feminismo Afro Latino Americano", e caindo a minha ficha do porquê algumas mulheres negras me chamam de irmã e não vejo a utilização da expressão por feministas brancas. Atribuia a expressão a regionalismos. Mas o fato é que Lélia ao tratar da indiferença no tratamento por feministas brancas liberais para com questões relacionadas ao racismo e violências sexistas sofridas por mulheres negras, há as que não sendo negras e/ou indígenas se aliam na luta antirracista e antissexista e por isso são chamadas de irmãs. 

De fato, fiquei sensibilizada. Não entendia que ser chamada de irmã era um reconhecimento e um convite para me integrar mais às questões. É preciso se ter dororidade (Vilma Piedade), além da sororidade. O Candomblé me possibilitou essa abertura de visão, a caminhar e a me propor um suicídio de classe, como posto por Amilcar Cabral.

Entender a expressão me fez compreender a importância do lugar de escuta proativo. É sobre acolher e ser acolhida numa dimensão política, de construção coletiva.  Iansã abençoe a todas!


Laura Berquó


AS VIDAS QUE NÃO SE CHORAM

 


AS VIDAS QUE NÃO SE CHORAM


Ainda no início da leitura da obra de Judith Butler intitulada "Quadros de Guerra. Quando a Vida é Passível de Luto?", mas já de início já colocadas as seguintes questões?

 1. Existe um direito à vida? Como? Se toda vida é perecível e vulnerável? Quem determina a existência de uma vida como no caso das discussões sobre aborto? Células-tronco são células vivas. Teriam mais utilidade ou validade que um embrião? 2. Todas as vidas são vulneráveis. Mas somente algumas são vulnerabilizadas por critérios sociais, econômicos. etc, e por isso, nem todas as vidas são "choradas", são "enlutadas", porque ao negarem a natureza de "vida", elas inexistem para o todo; 3. O adomercimento da esquerda para a utilização das pautas minoritárias, e aí Butler cita a pauta feminista, para justificar a biopolítica sobre corpos determinados. 

A autora cita o exemplo da utilização da pauta identitária feminista para justificar a perseguição aos muçulmanos. De fato, se observarmos o discurso contra povos, a exemplo dos palestinos e outros cuja maioria professe a religião islâmica, discursos identitários ligados à pauta feminista e LGBT são instrumentalizados nesse sentido, como se pudesse haver a partir daí uma legitimação das mortes. Quais mortes? Se são vidas vulnerabilizadas e que não podem ser objeto de luto? 

As vidas que devem ser choradas, quando perdidas, são tomadas a partir de critérios políticos, ideológicos, menos do ponto de vista correto: é uma vida que merece proteção, porque toda vida é vulnerável, passível de morrer, porém, certas situações deixam-nas em situação de vulnerabilidade maior. 

Se a extrema-direita não chora a morte de milhares de palestinos em Gaza, usando a pauta identitária feminista e LGBT, por exemplo, para legitimar o discurso contra a existência desse povo, a extrema-esquerda, que na prática se mostra antissemita, tentando se legitimar na luta contra o colonialismo, também não se comoveu com a morte e estupro de israelenses em 7.10.2023, onde crianças foram sacrificadas de forma cruel, mulheres estupradas em público, etc. É o político, as conveniências políticas dirão quando vidas palestinas e israelenses devem ser choradas, enlutadas.

E no Brasil? Não vou voltar a abordar a instrumentalização das pautas identitárias pelo STF enquanto desmonta os direitos sociais, sem precedentes, diga-se de passagem. Temos outro exemplo citando o STF. Como uma pessoa leiga vai provar a eficácia de um remédio contra o câncer, por exemplo, para que possa ter os seus direitos fundamentais à vida e à saúde respeitados? Se há judicialização é porque já houve a lesão de um direito pelo Estado que falhou no fornecimento pelo SUS. E a pessoa doente e leiga terá que provar a eficácia científica de uma medicação, inclusive já aprovada pela ANVISA, caso não esteja na lista do SUS. Enquanto isso, pessoas definham.

As pautas identitárias são constantemente utilizadas pela extrema-direita, pelo neoliberalismo, para justificar e legitimar a invisibilidade de vidas que deveriam ser enlutadas, consideradas perdidas. 

Vou prosseguir na leitura de Butler. E entender o porquê mesmo com a adoção correta de pautas identitárias, como a que denuncia a necropolitica contra a população negra, o Estado não entrega políticas públicas eficientes. Com exceção das políticas afirmativas para cotas, como vão as políticas para o segundo teste do pezinho, tratamento de pessoas afrodescentes com traço ou anemia falciforme, problemas de saúde com maior incidência na população afrodescendente, questões específicas da saúde da mulher negra, etc?

Muitas são as vidas que por decisões políticas são invisibilizadas e por "não existirem não são passíveis de luto. Quando incômodas, utilizam-se pautas identitárias ou discursos para legitimar mortes.


Laura Berquó

domingo, 31 de agosto de 2025

PATRILOCALIDADE E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


 PATRILOCALIDADE E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER


        A Lei n. 14.448/2022 instituiu o Agosto Lilás como um conjunto de ações, durante todo o mês de agosto, de conscientização para o fim da violência contra a mulher, que deve ser adotado pela União, Estados e Municípios.

       

       O número de feminicídios em 2024 atingiu índices alarmantes, mesmo com a vigência do Pacote Antifeminicídio que instituiu a pena-base de 20 a 40 anos de reclusão para feminicidas, destacando o feminicídio como tipo independente do crime de homicídio e não mais qualificadora. Também criou impedimento para nomeação de feminicidas ou agressores de mulheres para cargos públicos e cargos eletivos, dentre outras medidas.

       

       Todas são formas encontradas pelo Direito  de tentar intimidar a crescente violência em razão do sexismo e misoginia. Há uma reação coletiva de muitos homens que se sentem prejudicados pelo empoderamento de mulheres e buscam com isso formas de manterem sua dominação por meio dos diversos tipos de violências.

       

        A Lei Maria da Penha é um grande avanço à própria Convenção Interamenicana de Belém do Pará de 1994. Enquando a Convenção reconhce a violência sexual, psicológica e física, a Lei Maria da Penha reconhece além dessas três, a violência moral e patrimonial.

Aproveitando o Agosto Lilás e a recente decisão do STF que impede a repatriação imediata de crianças para países estrangeiros nos casos de violência doméstica, mesmo com a alegação pelo genitor/ofensor de subtração ou sequestro internacional de crianças, temos que falar urgentemente de patrilocalidade e como essa cultura patriarcal coloca a mulher em situação de vulnerabilidade maior.

       

       Há uma situação específica que gera uma grande probabilidade de violência contra as mulheres, que é a fixação do domicílio do casal na residência, localidade, estado ou país de origem do homem ou da família deste.  O direito do homem fixar a residência do casal era recepcionada, por exemplo, pelo Código Civil de 1916. Esse fenômeno é caracteristica do patriarcado em vários povos e estudado pela antropologia. Porém, aumenta o risco da mulher ficar desprotegida, sem amparo ou apoio de seu grupo familiar em casos de violência praticada por seu marido, companheiro ou familiares deste.


        Nessa esteira de proteger os direitos humanos das mulheres e dentro do princípio do melhor interesse da criança, vimos que a decisão do STF é relevante para coibir abusos causados pela patrilocalidade. Mesmo a Convenção de Haia não foi capaz de assegurar a integridade psicológica de crianças em caso de violência familiar e doméstica de suas mães. Invisibiliza um dos fatores que levam mães a fugirem e pedirem apoio nas Embaixadas e Consulados de seus países de origem  com seus filhos que é justamente a violação de seus direitos humanos enquanto mulheres.


        Precisamos debater mais sobre patrilocalidade e como a União, Estados e Municípios podem contribuir com políticas assistenciais, por exemplo, por meio de suas secretarias de Assistência Social e das Mulheres para permitirem o retorno dessas mulheres vítimas para seu local de origem, caso assim desejem.


        A patrilocalidade silencia mulheres estrangeiras em nosso país, brasileiras no exterior, mulheres vítimas de violência por familiares de seus maridos, mulheres fora da sua localidade de origem que dependem economicamente de seus cônjuges ou companheiros. A patrilocalidade nunca foi um fenômeno recente, porque é cultural dentro do patriarcado, mas que exige, por isso, uma resposta mais efetiva para resguardar a integridade da mulher.


Laura Berquó

domingo, 17 de agosto de 2025

O PROJETO DOS CEMITÉRIOS UNIVERSITÁRIOS

 O PROJETO DOS "CEMITÉRIOS UNIVERSITÁRIOS"


      Mexendo no meu instagram vi postagens que fiz do tempo da pandemia. Revoltada com a possibilidade de sermos obrigados a retomarmos as aulas presencialmente sem termos todos os corpos, docente e discente, imunizados com a primeira dose da vacina contra o coronavírus, vulgo COVID, postei, na época, que o projeto do MEC, com certeza, era a criação de "cemitérios universitários". Eu protestava contra uma possível necropolítica educacional.


      Caso houvesse a imposição, defendi que seria o caso de praticarmos desobediência civil e mantermos nossas aulas virtuais. Houve também as "carreatas da morte" no início da pandemia, onde em muitas cidades se protestava contra o fechamento do comércio para evitar aglomeração.


      Passou a pandemia e ainda vivemos os reflexos não só do COVID, mas do Golpe de 2016 e a ascensão da extrema-direita no Brasil, porque o que é ruim tem que chegar em combo pelo que parece.


      Mesmo assim vemos como as pessoas se consternam e se solidarizam com politicos que iriam rir da sua falta de ar, de politicos que preferem prejudicar a economia com o tarifaço e se esquecem dos comerciantes e consumidores. Também choram, esses politicos, alegando problemas de saúde.


       Eu lembro sempre do projeto dos cemitérios universitários como o auge da maldade. E também acho incrível como essas  classes média baixa e média/média vão pedir anistia e falar em Direitos Humanos nas manifestações, mas nunca se juntaram para pedir liberdade de quem comete furto famélico. Eu sempre via bem a cara da classe média, predominantemente branca, que apoiava aquele governo maluco.


   Ainda bem que os cemitérios universitários não foram implementados como política oficiosa. Mas vendo o discurso de jovens que adoram governo necrófilo e genocida, muitos que não teriam oportunidade de estudo sem o REUNI que expandiu para os interiores campi universitários, vejo que há uma inversão de valores. A vida, ou a qualidade dela, não é também a prioridade para muitos dessa nova geração extremamente conservadora que está surgindo.


Laura Berquó